Folha de S. Paulo


Painel deformado

O Painel do Leitor, publicado na página A3, deveria ser, por definição, um espaço democrático para manifestação de opiniões e queixas de leitores.

É certo que autoridades ou celebridades em geral são também leitores do jornal e que, nesse sentido, a presença de cartas suas naquele espaço pode fazer sentido. Ocorre, porém, uma deformação séria e preocupante.

Tem sido notória a ocupação da maior parte da seção por cartas de pessoas que procuram, ali, contestar reportagens do jornal nas quais elas ou suas instituições foram envolvidas.

Neste mês, até sexta-feira, 51% da centimetragem ocupada por cartas no Painel são de autoridades, com as devidas respostas dos jornalistas. No período de 10/5 a 23/5, essa taxa sobe para 58%.

Não por acaso, cresceu também o número de reclamações dos leitores "comuns", que vêem nisso, com razão, um desvirtuamento da seção.

Em tom de brincadeira, surgem em algumas mensagens ao ombudsman sugestões de mudança para o seu nome: Painel das Respostas, Painel dos Consertos, Painel das Reti-ratificações, Painel das Lamentações, Painel das Queixas...

Não é um problema novo. Eu mesmo já o abordei aqui, em 10/ 3/2002, discutindo, por exemplo, a idéia, que também não é nova, de criar um espaço específico para as contestações das autoridades -idéia que a direção do jornal considera discriminatória, pois criaria, em princípio, duas classes de leitores.

O problema de fundo, na verdade, é outro: a dificuldade do jornal de aplicar até o fim, com regularidade, a sua própria norma de sempre ouvir o "outro lado", de fazer desse princípio uma parte orgânica das reportagens que publica.

Se isso de fato acontecesse como deveria, é fácil supor que a procura das celebridades pelo Painel -ao menos como espaço de "outro lado"- cairia bastante e o jornal não se veria obrigado a reduzir tanto a chance de seus leitores "comuns" se manifestarem ali democraticamente.

Na situação atual, querendo-se ou não, vigora objetivamente, no Painel do Leitor, a existência de duas categorias: leitores "mais" e leitores "menos".

CHECK-UP NO "TIMES"

Na esteira do explosivo caso de Jayson Blair, o ex-repórter do "New York Times" que fraudou inúmeras reportagens com plágios, invenções e mentiras -aqui abordado semana passada-, o mais influente dos diários norte-americanos anunciou na quarta-feira, em duro memorando interno, a criação de uma comissão de mais de 20 jornalistas, incluindo até quatro pessoas de fora do "Times", para rever os principais procedimentos usados pela Redação.

Dentre as pessoas de fora estão um ex-presidente da agência Associated Press, um ex-editor de Opinião de um jornal de Seattle e uma ex-ombudsman do diário "The Washington Post".

A idéia de integrar à equipe essas pessoas deve servir, diz o texto, para uma verificação rigorosa da própria checagem, de modo a apontar ao jornal se ele não está sendo condescendente demais consigo mesmo.

O grupo rastreará as operações de recrutamento, contratação, promoção, o processo editorial (inclusive apontamento e prevenção de erros), questões éticas, como o uso de fontes não-identificadas (o chamado "off"), e fará à direção do jornal um parecer sobre se ele não deveria instituir a figura do ombudsman.

Bombardeado por todo lado, inclusive por seus concorrentes, o "Times", como se vê, acusou fortemente o golpe do caso Blair.

Essa medida, num dos maiores e mais importantes jornais do mundo, expressa o quanto a credibilidade, ao lado da ética e da transparência, integra o núcleo central de qualquer veículo que se proponha a fazer um bom jornalismo.

Questão de sobrevivência.


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