Folha de S. Paulo


Quando dizer a verdade exige coragem

Eric Thayer-1º.ago.16/Reuters
Donald Trump em evento de campanha na Pensilvânia
Donald Trump em evento de campanha na Pensilvânia

No dia seguinte à tentativa frustrada de golpe na Turquia, o jornal de oposição "Cumhuriyet" publicou que "um presidente acusado de ajudar terroristas do Estado Islâmico se torna a partir de agora um presidente que se opõe ao golpe de Estado e defende a democracia". Os turcos saíram às ruas contra o golpe, a despeito das credenciais de Erdogan. Um jovem manifestante justificou ao jornal "The New York Times" que "a pior democracia ainda é melhor do que o melhor golpe de Estado".

De lá para cá, sob o manto do estado de urgência, o presidente turco promoveu uma série de medidas de exceção, a começar pela suspensão temporária da convenção europeia dos direitos humanos (da qual a Turquia é signatária), o expurgo de milhares de pessoas do serviço público (incluindo da Justiça e da Educação) e o fechamento de dezenas de jornais, editoras e emissoras de TV, como se fosse ele quem tivesse dado o golpe. Para completar, ameaçou restabelecer a pena de morte, "atendendo ao clamor das ruas".

Não é só na Turquia que as coisas estão difíceis de entender. No ano passado, com a Grécia acuada pela perspectiva de mais um arrocho dos credores europeus, o primeiro-ministro Alexis Tsipras, líder da esquerda radical, interrompeu as negociações com o Banco Europeu e com o FMI para propor um referendo aos gregos. A Grécia votou e comemorou o "não" à Europa, mas só até o voto de independência confirmar a dependência do país, que não apenas permaneceu na Europa como acabou voltando à mesa de negociação para acatar todas as exigências do acordo.

O Brasil não é exceção. Um governo interino, posto no poder com o pretexto de combater a corrupção e sanar as contas públicas, cerca-se de investigados e acusados de corrupção e, enquanto mete a faca na educação e na saúde pública, esbanja do orçamento para saciar o fisiologismo do Congresso que afastou o governo anterior. Gente antes indignada com a corrupção agora assume que a Lava Jato estará de bom tamanho no dia em que tirar Lula da jogada. Afinal, "o país precisa voltar a crescer".

A hipocrisia exige hoje um esforço redobrado de entendimento. A confusão entre posições que antes pareciam opostas já não permite o recurso às velhas certezas. Mas se pensar já é um esforço com a ajuda dos outros, que dizer quando os outros são o obstáculo? Os Estados Unidos divididos entre Hillary e Trump são um sintoma. Enquanto Hillary tenta lidar com as contradições, Trump poupa o eleitor do esforço de entendê-las, com sofismas, preconceitos e um mundo bidimensional. Num discurso ufanista, em fevereiro, o candidato republicano fez uma declaração de amor (que deveria ter sido tomada como insulto) aos seus eleitores: "I love the poorly educated" (amo gente pouco educada).

Em 1983, Michel Foucault proferiu um ciclo de palestras sobre discurso e verdade na Universidade de Berkeley, na Califórnia. As conferências saíram agora na França, pela editora Vrin. O tema central é um conceito grego, parrésia, que significa "correr o risco de dizer a verdade". Não se trata de qualquer verdade, nem da simples crença pessoal nem da verdade comprovada ou aceita por todos. Para que haja parrésia, quem tem convicção no que diz precisa se arriscar a dizê-lo (dizer deve ser ao mesmo tempo um risco, uma liberdade e um dever do cidadão) pelo bem comum. A prova da sinceridade é a coragem. O tirano, por exemplo, não corre perigo algum em dizer o que quer que seja.

A parrésia está na constituição do pensamento crítico e da democracia. É o contrário da hipocrisia e da retórica que esconde e dissimula para convencer. A parrésia não implica apenas a verdade sobre ou contra alguém, mas a verdade sobre si mesmo, a verdade sobre o lugar e as intenções de quem a diz. É uma forma direta de dizer. Está associada ao orador que, num debate político, corre o risco de perder a popularidade por se opor à opinião da maioria. É o oposto da demagogia e do populismo.

O papel pedagógico do professor se confunde com o conceito de parrésia quando a escola passa a fomentar o espírito de contradição e a atitude crítica sem a qual o mundo estaria reduzido a dogmas e preconceitos. A retórica dos projetos de lei que combatem a formação do pensamento crítico nas escolas, com a impostura tão acintosa quanto perversa de evitar uma suposta doutrinação, tem no final das contas um único objetivo: calar quem corre o risco de dizer. É um programa assustador de povo, de país e de mundo. Não seria mau se pelo menos tivessem a coragem de adotar a frase de Trump como lema.


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