Folha de S. Paulo


Desperdícios

Quem tem mais de 40 anos certamente se lembra de ter ouvido de seu pai a tradicional reprimenda "apague essa luz, menino, eu não sou dono da Light" ou de sua mãe a recomendação de não demorar tanto debaixo do chuveiro.

Algumas décadas atrás, éramos muito mais cuidadosos com os desperdícios, talvez pelo legado dos imigrantes europeus, calejados por longos anos de escassez enfrentada durante o período das duas grandes guerras do século 20, ou pela própria oferta limitada de recursos.

Com o tempo e com a urbanização acelerada, prosperou no país uma forte tendência ao desperdício e até mesmo um certo preconceito contra aqueles que ainda recomendavam apagar a luz ao deixar o quarto, desligar a TV ao sair da sala, fechar a torneira para escovar os dentes, reaproveitar comidas, não lavar calçadas ou carros com esguicho, evitar longas descargas no vaso sanitário etc.

E, como todas as crises trazem lições, a atual crise hídrica, com impacto na geração de energia elétrica, já está nos reensinando a tratar desses detalhes do dia a dia com um pouco mais de austeridade.

Sendo bem aproveitada, essa é a austeridade boa, aquela que vale para todas as circunstâncias, porque reduz despesas correntes ou supérfluas para que os recursos sejam utilizados em projetos mais importantes. Serve para famílias, para empresas e para governos.

Os bons chefes de família tendem a economizar nesses detalhes, mas não hesitam quando se trata, por exemplo, de adquirir uma casa própria, gastar com educação das crianças ou utilizar bens e serviços que vão proporcionar conforto e segurança para o casal e os filhos.

Um bom administrador de empresas também mantém olhos muito abertos para gastos supérfluos ou abusivos na operação da companhia, mas trata com cuidado especial os projetos de investimentos para ampliar produção, incorporar inovações ou ganhar produtividade. Sem isso, nos tempos atuais, as empresas são atropeladas pela concorrência e definham com impressionante velocidade.

Nos três níveis de governo, não é muito diferente. As boas gestões não cedem à tentação de utilizar a fórmula fácil do aumento de impostos, que logo impacta a atividade e reduz ainda mais as receitas públicas. Concentram-se no controle dos gastos correntes, aqueles que sustentam a máquina governamental ineficiente e burocrática, mas não descuidam dos investimentos.

O país vive um período em que esses cuidados são essenciais. O turbilhão decorrente de crise hídrica e energética, do caso Petrobras, da inflação elevada, da defasagem cambial, dos juros exorbitantes e do crescimento zero não pode jogar no lixo projetos de investimentos públicos e privados.

As deficiências da estrutura logística brasileira exigem a continuidade de obras de ferrovias, hidrovias, estradas e portos. Aeroportos, alguns já melhorados para atender ao movimento da Copa do Mundo, ainda têm de ser concedidos à iniciativa privada para ampliação e modernização. Novas usinas hidrelétricas precisam ser licitadas. As metrópoles carecem de metrôs e outros investimentos em mobilidade urbana. E, principalmente, pedem soluções urgentes para a escassez de água e energia.

No setor privado, a continuidade dos programas de financiamento, principalmente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), é essencial para sustentar inovações e projetos que vão melhorar a competitividade das empresas brasileiras, em especial da indústria.

O fato real é que vivemos um ano difícil, com desafios de toda a ordem, e convém ter em mente a ideia de que os ajustes mais eficientes são os graduais. Tentativas desesperadas de resolver todos os problemas com um tiro de canhão nunca funcionam –já vimos isso no passado– nem para derrubar inflação, nem para cortar deficit, nem para estimular crescimento.

Até os mais ortodoxos economistas já sugerem que o compromisso de baixar a inflação para o centro da meta (4,5%) no ano que vem, por exemplo, poderia ser adiado um pouco, por implicar mais aumentos nas taxas de juros, dolorosos demais para o país pelo seu óbvio impacto na atividade e no emprego. Como sempre, vale lembrar que a "virtude está no meio".


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