Folha de S. Paulo


Quem é Barbara Piaget?

Aquela parte do Sermão da Montanha que diz "não julgueis, para que não sejais julgados" não tem andado muito na moda ultimamente, mesmo porque hoje não se usa muito o presente do subjuntivo em conversas. Seria bastante incomum ouvir na rua algo na seguinte linha: "Mano, demando que vós me passeis a vossa carteira, isto é uma apropriação de recursos, peço que vos ligueis", né, não?

Passadas duas semanas daquele evento indigno do motorista que jogou em um córrego o braço de um rapaz da mesma idade que ele, depois de beber e dirigir e causar uma colisão capaz de decepar o membro de seu contemporâneo, tomei conhecimento de informações que despertaram meus mais miúdos sentimentos de inquietação. Depois do acidente, será possível que ninguém da família do atropelador tenha se animado a procurar a vítima para saber como ele estava passando?

E, mais curioso ainda: correu que o rapaz que tivera o braço extirpado tinha desculpado o termocéfalo que o deixara naquele estado.

"Ora, mas já?", perguntei ao meu zíper. (A jaqueta que estou usando neste outono, por acaso, não está guarnecida de botões.) "Não será um pouco cedo para perdoar?"

Ilustração Alex Cerveny

Veja, não sei bem se o ciclista David Santos Souza, 21 anos, perdoou o motorista Alex Kozloff Siwek, 21 anos. Mas, se o fez, ele terá agido como um ser mais elevado do que eu e você, terá se desobrigado de carregar pela vida um ressentimento que a falta de braço ora tornaria tarefa bem mais complicada.

Nas primeiras horas depois do acidente, como sou bem mais terrena do que o David e costumo atribuir aos outros a culpa por todos os ressentimentos que possam dar as caras pelo hall de entrada do meu coração, eu me pus a pensar nos pais tanto de David como de Alex.

Ah, mas nem lhe conto, meu nobre leitor, a quantas conclusões para lá de acertadas eu cheguei! Os pais de Alex, tenho certeza absoluta (até expressei minha convicção em alto e bom som em entrevista no "Programa do Jô"), só podem ser do tipo que ajudam a mascarar os erros dos filhos, grande porcaria eles devem ser, parece que consigo vê-los aqui diante de mim enquanto passo um sabão de luxo neles.

Os de David, em contrapartida, tenho tudo esquadrinhado na minha mente impoluta e salomônica --tive todo o tempo do mundo para pensar e sou especialista nisso, não?--, só podem ser a imagem da família de propaganda de margarina anticolesterol.

Foram tão craques na tarefa de educar que conseguiram formar um jovem maduro o bastante para saber que perdoar é um ato de profundo saber. Que ele não está favorecendo a quem lhe fez mal, mas libertando a si mesmo dos sentimentos mais impuros e terríveis, que está tirando um baita peso dos ombros.

Mas é aí que o salto da bacana da colunista quebra e ela cai de boca na quina da calçada e quebra todos os dentes jaquetados que pagou em 36 prestações.

Quem sou eu, dona Barbarica Gancia, para dar palpite? Euzinha, que tive de ir consultar a internet para saber que tempo de verbo era "julgueis" e "sejais"? Quem sou eu para palpitar, que não tenho a menor ideia, pela graça do Nosso Bom Senhor de Piraporinha, do que é ter filhos? Por acaso conheço algum dos envolvidos na história? Sequer li o boletim de ocorrência?

Estava presente à cena do acidente? Me chamo Rosely Sayão ou Barbara Piaget para entender de educação ou psicologia infantil? Não, né? Então "não julgueis, para que não sejais julgados" e boa Páscoa!


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