Folha de S. Paulo


Ponte aérea RJ - Normandia

Adams Carvalho

Se os brasileiros aplicassem no combate à desigualdade um terço da ansiedade empregada para sair do avião, seríamos uma Noruega tropical. Repare. As rodas mal tocam a pista e os passageiros já levam a mão ao cinto de segurança, como caubóis num duelo levando a mão ao coldre. A diferença é que o caubói, mesmo nas vastidões sem lei do velho oeste americano, espera terminar os dez passos para se virar e atirar. Já aqui, nas vastidões sem lei do sudeste brasileiro, ninguém aguarda apagarem os avisos de apertar cintos. O avião ainda taxia na pista e uns quinze apressados, indiferentes aos apelos do comissário de bordo, nos alto-falantes, põem-se de pé, pegando as suas malas e ligando, afoitos, os celulares.

Quem assiste à cena acha que o passageiro da poltrona 17C é o coronel americano responsável pela Coreia do Norte, temeroso de que a terceira guerra mundial tenha começado enquanto ele sobrevoava o Vale do Paraíba. O passageiro da 21 D, quem sabe, é um espião norte-coreano, aguardando o Wapp de Pyongyang que lhe revelará a identidade do coronel americano. (A mala que ele retira tão afobado do compartimento de bagagens deve conter o gás sarin com que matará o coronel logo na saída do finger, diante da "Fátima Rendas"). Quantos aos outros, devem ser médicos a caminho de transplantes, cientistas pesquisando a cura do câncer e cidadãos com urgências ainda maiores, tipo, sei lá, piriri. Pernas chacoalham. Dedos são estalados. Os olhos oscilam entre os celulares e a porta do avião.

Eu, ainda sentado na minha cadeira, acho-os ingênuos por esperarem de pé, mas assim que a porta se abre entendo que o ingênuo sou eu: ninguém me dá passagem. Todos marcham decididos como aliados desembarcando na Normandia. É preciso esperar o pelotão inteiro sair para a derrubada de Hitler antes que eu possa me juntar à fila.

Chegando à porta, os passageiros olham aflitos pelas janelas: será finger– e mísseis nucleares serão lançados, o coronel americano será morto, fígados serão transplantados, os aliados vencerão o nazi-fascismo– ou será um ônibus e retrasar em dois minutos e dezenove segundos tais missões fundamentais para o futuro do planeta?

Eita, é ônibus. Não cabem todos num só e os passageiros sabem disso. Correm pela pista. Um garotão de um metro e noventa passa com as rodas da mala por cima de uma senhorinha. (Sem dúvida é o do piriri). O ônibus lota. Os mais fortes arrancam os mais fracos lá de dentro. Vemos jiu-jítsu, boxe, capoeira, mas o norte-coreano acaba com a confusão jogando gás sarin na pancadaria. Os sobreviventes o olham agradecidos.

Descemos do ônibus. Em marcha atlética, passamos pelas esteiras de malas e cruzamos o portão do desembarque: aí, meus amigos, acontece um milagre. A saída do desembarque é um portal dimensional, uma barreira mágica capaz de dar um "reboot" em nossas atarantadas sinapses: da porta pra lá, a pressa desaparece. O suposto coronel para pra comprar um pão de batata. O espião coreano é abordado pelo homem da plaquinha "Dr. Takeda, Agrozebu", o atropelador com piriri abraça a filhinha e os demais caminham, na mais santa paz, para o ponto de táxi.

Perto dali, noutro avião, cento e dez passageiros bufam: o desembarque será atrasado em onze minutos pois estão terminando de retirar da pista os últimos mortos pelo gás sarin. Saco.


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