Folha de S. Paulo


Ave, anca!

Adams Carvalho/Folhapress

É preciso quase nada para que o pensamento estoure a bolha de sabão a que chamamos de normalidade e descambe para seu estado natural: o buscapé do delírio. Estávamos eu e o Alemão, exaustos, fazendo o check-in para a última ponte aérea depois de um dia inteiro trabalhando no Rio; encarando o cartão de embarque, meu amigo solta a pérola que, não fosse a desatenção de um combalido superego, seria condenada para sempre ao ostracismo nas profundezas do subconsciente: "Ave, César! Ave, Anca!".

Pronto. São apenas quatro palavras, somente quinze letras (três a mais que "Abre-te, Sésamo", quatro a mais que "Abracadabra") e estou imediatamente instalado num mundo paralelo onde o nome de uma companhia aérea celebra, parodiando o Império Romano, as nádegas. Eu, cujas sinapses àquela hora tampouco estão em seu apogeu, respondo com mal disfarçada grandiloquência: "A companhia que abunda nos ares".

É claro que nossa realidade, do jeito que é, não comportaria uma companhia aérea chamada Ave, anca!. Para que tal empresa pudesse existir seria necessário algum ajuste no passado –como um benjamim factual que preparasse os plugues quadrados de ontem para os pinos multiformes do amanhã.

Se, por exemplo, em vez do Ronald Reagan, ator de faroestes B, tivesse sido o Jerry Lewis, ator de comédias A, eleito duas vezes presidente dos Estados Unidos, talvez não houvéssemos descambado para um mundo em que a intolerância é uma virtude e o trocadilho, um vício. (Sonhar não custa nada –a não ser, claro, que estejamos dormindo num hotel).

Passo pelo raio-X pensando em "trocadilhos" e sou imediatamente assaltado por um deles, não dos melhores, confesso: "trocaudilhos". Talvez a eleição de Jerry Lewis durante a Guerra Fria levasse à ascensão, em toda a América Latina, de ditadores alinhados à comédia. "Stand-up-tyrants" que fariam discursos de quatro horas em praça pública engatando uma piada atrás da outra. Promoveriam banquetes ao ar livre em que perguntariam às multidões: "É pavê ou 'pacomê'?". Entre os rebanhos gargalhantes se ergueriam bravos guerrilheiros, franzindo a testa em protesto. Seriam presos. Seriam levados ao paredão, diante dos quais espingardas –"preparar!"– disparariam –"apontar!"– sem dó –"fogo!"– flores de plástico.

Na fila do embarque pergunto pro Alemão se a nossa Ave, anca! não correria o risco de ser considerada uma empresa machista. "Quem disse que a anca é de mulher?", ele me responde. "É de homem?". "Por que não ambas?". Discutimos se não haveria dificuldade em vender uma ode a bundas unissex. As mulheres provavelmente achariam apelativas propagandas com bundas femininas, assim como grande parte dos homens rejeitaria os derrières masculinos.

É, não daria certo. Uma pena. Imagina ouvir os alto-falantes chamarem "Atenção passageiros Ave, anca! do vôo 6460 para São Paulo, cartão Hulk Gold e Gretchen Platinum, embarque imediato pelo portão quatro". "Não seria desbundante?", levanto, para a cortada do Alemão: "A concorrência ia nos desancar". Caminhamos um pouco chateados em direção ao finger: todo um admirável mundo novo que vimos surgir e desaparecer diante de nós, como uma bolha de sabão. É o tipo de coisa que me deixa, vamos dizer assim, meditabundo. Pronto, parei.


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