Folha de S. Paulo


Desculpas pra Ciça, guisado de ovas

Adams Carvalho/Folhapress
Ilustração Antonio Prata de 3.set.2017
Ilustração Antonio Prata de 3.set.2017

Eu marquei de jantar com a Ciça e não fui. Simplesmente esqueci. Fiquei aqui em casa assistindo a velhos DVDs do "Seinfeld" enquanto, lá no restaurante, sozinha, vendo fotos de gatos de desconhecidos no Instagram, minha amiga me amaldiçoava. Escrevo esta crônica como uma forma de reparação. Talvez, se eu declarar ao Brasil como admiro a Ciça, ela possa me perdoar. Admiro a Ciça, entre outras coisas, porque ela é a pessoa mais inteligente que eu conheço. Não inteligente do tipo que faz raiz cúbica de cabeça, mas inteligente tipo sábia. Vou contar só uma história e vocês vão entender.

A Ciça tem uma casa na praia. Na casa há um deque que avança mar adentro e diante do qual, toda manhã, nos feriados, aporta uma velha lancha de alumínio. É o Jorginho, pescador, que vai de casa em casa perguntando se o pessoal quer alguma coisa, passa o dia pescando e volta no fim da tarde com o que tiver conseguido pegar. Naquela manhã, já faz uns 15 anos, pedimos caranguejos. Lembro que era baratíssimo. Encomendamos duas dúzias. A ideia era ferver tudo e ficar naquele deque estendido entre o Atlântico e a Via Láctea bebendo cerveja e quebrando patas de caranguejo às pauladas até que os estômagos ou os bíceps pedissem arrego.

Eu disse que o Jorginho passava o dia pescando. É verdade –mas não é toda a verdade. Ele passava o dia pescando e bebendo cachaça, de modo que quando ele voltou lá pelas seis e dissemos que não aceitaríamos nenhum dos quase 50 caranguejos vivos porque estavam cheios de ovas, ele resmungou um "bobagem" não muito amoroso, começou a tirar os bichos do seu balaio e a jogar na nossa bacia.

"Jorginho", eu insisti, imbuído de um súbito ímpeto ecológico, "Se você pescar caranguejo com ova, logo não vai mais ter caranguejo pra você pescar". "Imagina, ó o tamanho desse mar", ele desdenhou e continuou a jogar caranguejos na nossa bacia. Ao perceber que não haveria diálogo, passei a jogar os caranguejos de volta no balaio dele. Mas o tempo que leva pra um paulistano estudante de ciências sociais pegar um caranguejo vivo dentro de uma bacia e jogar no balaio de um caiçara pescador é o tempo de um caiçara pescador pegar cinco caranguejos vivos dentro de um balaio e jogar na bacia do paulistano. Bacia cheia, Jorginho decreta, acariciando o cabo de uma peixeira: "É 30 real".

Quando eu já estava refletindo se seria heroico ou patético morrer defendendo a descendência de 24 caranguejos, a inteligência da Ciça, essa amiga querida e genial que eu cretinamente deixei mofando na mesa de um restaurante na última sexta, surge para me salvar.

"Jorginho, quanto você quer por todos os caranguejos?". "Todos?". "É. Todos. A gente vai fazer um guisado de ovas de caranguejo". "Hm. Cinquenta". A Ciça pagou, virou balaio e bacia no mar e os caranguejos saíram nadando felizes em direção às suas doulas e Pro Matres submarinas. Jorginho deu uma risada, disse "Cês são tudo louco!" e partiu no seu barquinho –não sem antes deixar de me esfaquear.

Acho que a Ciça tinha que fazer um TED com essa história. Acho que ela devia escrever um livro de autoajuda "Guisado de Ovas: identificando problemas e encontrando soluções". Acho que ela podia, ao menos, perdoar esta besta quadrada que não sabe nem sequer salvar caranguejos; o que dizer sobre cultivar amizades?


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