Folha de S. Paulo


Vai pro Haiti!

Adams Carvalho/Folhapress

Chico Buarque está lançando um disco e o primeiro comentário que leio a respeito, no Facebook, é um elaboradíssimo e original "Vai pra Cuba!".

Curioso. Quando um governo de direta dá errado, a culpa recai sobre o governante. Quando um governo de esquerda dá errado, a esquerda como um todo leva na moleira. (Não interessa aqui se a Dilma fez ou não um governo de esquerda, é assim que o PT se apresenta e assim que é visto por seus detratores).

Posso estar enganado, mas não lembro de, após as presidências do Sarney ou do Collor, pessoas provocarem seus apoiadores com "Vai pro Haiti!", "Vai pra Guatemala!", "Vai pra República Dominicana!" –só pra ficarmos em alguns pesadelos promovidos pela direita centro-americana. Na cabeça dos que gritam "Vai pra Cuba!", a América Central parece ser um oásis de liberdade e bem estar, manchado exclusivamente pela ditadura cubana.

No discurso de parte da direita brasileira, o Brasil também parece ter sido um oásis de liberdade e bem estar até a chegada do PT ao poder. "Quero o meu Brasil de volta!", exigiam faixas nas manifestações de 2016. Qual Brasil, cara pálida? O da ditadura? O do analfabetismo? O da escravidão?

Impossível fechar os olhos para os erros atrozes e a corrupção vergonhosa que, entre inegáveis acertos, houve durante os governos do PT. É preciso, contudo, separar os males decorrentes das vicissitudes petistas (a crise econômica atual é, sem dúvida, um deles) dos males que nos acompanham desde sempre. Ao se ouvir o que dizem os Bolsonaros, os Felicianos, os Olavos, olavetes e companhia limitada (bem limitada), parece que estamos na Rússia dos anos 1990, comemorando o fim da União Soviética e lutando para reconquistar as liberdades solapadas durante um século de stalinismo.

Na paranoia delirante da "Alt-right" brasileira, a esquerda é hegemônica no país e trama para nos transformar numa Cuba ou numa Venezuela. Está nas escolas, doutrinando nossos filhos, no cinema (bancada pela Lei Rouanet), fazendo a cabeça dos nossos jovens, nas rádios, pela voz de cantores como Chico Buarque, lançando seu veneno ideológico sobre todas as idades.

Se o discurso ficasse circunscrito aos loucos da extrema direita, seria apenas patético, mas ele os extravasa. Atualmente, qualquer pauta minimamente progressista liga a chavinha "Vai pra Cuba!". Se você é contra liberar para mineração um pedaço da Amazônia do tamanho do Espírito Santo: "Vai pra Cuba!". (Dois meses atrás a Noruega –que não é comunista–, indignada com a maneira como o governo vem tratando a Amazônia, cortou pela metade a ajuda financeira que dava no combate ao desmatamento).

Se você é a favor do casamento entre pessoas do mesmo sexo: "Vai pra Cuba!" (Casamento entre pessoas do mesmo sexo é permitido nos países capitalistas mais avançados. Gays, aliás, iam para a cadeia em Cuba). Se você é contra a reforma trabalhista da maneira como ela foi proposta: "Vai pra Cuba!". (A Organização Mundial do Trabalho, agência da ONU –que não vem a ser um órgão comunista–, condenou a reforma).

Espalhando a loucura de que há o risco de nos transformarmos em Cuba, a direita hidrófoba nos ajuda a caminhar, cada vez mais rápido, rumo ao Haiti.


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