Folha de S. Paulo


É uma crônica, companheira

Adams Carvalho/Folhapress

Eu ia começar com "Em tese, o cronista", mas penso melhor e me dou conta de que deveria começar com "Na prática, o cronista", pois o cronista só existe na prática. O Amor, o Perdão, a Saudade, Deus e outras maiúsculas celestes nós deixamos para os poetas, alpinistas muito mais hábeis que com dois ou três pontos de apoio chegam ao cume de qualquer abstração.

O cronista é um pedestre. O que existe para o cronista é a gaveta de meias, a lancheira do filho, o boteco da esquina. Verdade que às vezes, na gaveta de meias, na lancheira do filho, no boteco da esquina, o cronista até resvala no amor, trisca no perdão, se lambuza na saudade, tropeça num deusinho ou outro (desses deuses de antigamente, também pedestres, que se cansam do Olimpo e vão dar umas bandas pela 25 de Março), mas é de leve, é sem querer, pois na prática (e é assim que eu devo começar) o cronista trata do pequeno, do detalhe, do que está tão perto que a gente nem vê.

Aí você lê, pensa, nossa, também acho que picada de mosquito entre os dedos dos pés é pior do que tortura chinesa, caramba, é mesmo, não tem som mais melancólico do que um apito de panela de pressão entrando pela janela, no meio da tarde, é isso aí, se cada comida fosse um título literário, empada seria "A Insustentável Leveza do Ser". That's my job.

Mas sob o peso desses dias, qualquer leveza soa leviana. Sento para escrever a crônica e me sinto fazendo um origami no ringue do UFC. Sou um barista, durante a erupção do Vesúvio, tentando desenhar coraçãozinho na espuma do café. Um ataque epilético não é, definitivamente, o melhor momento para um cafuné. UFC. Vesúvio. Ataque epilético. Boas imagens para esses dias. Melhor ainda: um lutador de UFC tendo um ataque epilético durante a erupção do Vesúvio. (Morreu o bebê atingido por uma bala dentro da barriga da mãe).

Aí o cronista, que também apanha, também esperneia, também respira o enxofre que exala sem parar da cratera noticiosa, faz o quê? O cronista se revolta. Abre mão de toda a delicadeza e diz: é tudo uma merda. O Brasil, os brasileiros, as aves que aqui gorjeiam, o samba e o guaraná.

Na semana seguinte bate a ressaca. O cronista junta os cacos. Faz um esforço. Escreve um texto otimista, tentando ver o que há de bom, "Memórias Póstumas de Brás Cubas", 58, 62 e 70, nossos filhos, "O amor da morena maldita no largo do Estácio".

Exaurido, ciente de que já bateu ponto nos dois extremos do pêndulo existencial, o cronista imagina que pode voltar ao seu ofício. Senta para escrever a crônica, apura o ouvido, mas não consegue escutar o assovio da panela de pressão entrando pela janela: ouve tiros de fuzil, o uivo da mãe que perdeu o filho baleado dentro da barriga e os discursos dos putos que se compram e se vendem para garantir a própria estabilidade enquanto mães seguem perdendo seus filhos, dentro e fora das barrigas.

Eu sei que já escrevi umas dez crônicas dizendo que ficou impossível escrever crônicas, mas veja: esta é a primeira crônica que eu escrevo sobre a dificuldade de escrever crônicas sobre a dificuldade de escrever crônicas.

Lembro agora, não sei bem por que, daquela passagem que dá título ao livro do Gabeira. Durante o sequestro do embaixador americano, durante a ditadura, durante a Guerra Fria (UFC, Vesúvio, ataque epilético), a guerrilheira recebe, revoltada, o beijo do guerrilheiro: "O que é isso, companheiro?". Ao que ele responde (leviano?): "É um beijo, companheira".


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