Folha de S. Paulo


Os mortos de sobrecasaca

Adams Carvalho/Folhapress
Ilustração Antonio Prata de 30.jul.2017

O que primeiro me impressiona, mexendo nas fotos, é quão pouco o sítio mudou ao longo de um século. A fachada da casa em Correas, Petrópolis, é idêntica desde 1914. Chegamos à mesma porta de madeira pelos mesmos seis degraus de tijolos aparentes, cimentados ali no início da Primeira Guerra.

A estátua, apesar de ter perdido uns dedos para a chuva ácida e outras intempéries, segue no meio do gramado, circundado pelo caminho de saibro branco. Os bancos do jardim, com os caramanchões de madeira por onde se embrenham os jasmins, estão intactos. Logo em seguida, o que me impressiona é nenhuma das pessoas que povoam os retratos existir mais.

Vejo meu avô com três ou quatro anos, sorrindo de dentro de um carrinho de latão, e não consigo evitar um assombro algo infantil, um susto de índio diante da pólvora. É uma situação tão prosaica, tão corriqueira e real que fecho os olhos e posso ouvir o ruído das rodas sobre o saibro branco –é o carro do Miguel, meu tio, chegando de São Paulo para ajudar na arrumação.

A cena, capturada em 1932, surge entre outras do fundo de uma gaveta, enquanto esvaziamos o escritório –deixaremos o quarto por último. Meu avô sorri, exultante. O céu é tão limpo quanto o de hoje, céu de inverno no campo. Como hoje, ao fundo, as pedras da Alcobaça e da Alcobacinha refletem o sol. Os cheiros do jardim deviam ser iguais, também: a grama molhada, o jasmim do caramanchão, a fumaça do fogão à lenha saindo pela chaminé.

O cenário permaneceu idêntico, mas meu avô, evidentemente, não –e me parece injusto que eu conheça todo o futuro que o garoto, preso para sempre naquele carrinho, ignora: vai se casar, se formar engenheiro, projetar locomotivas, ter sete filhos e dez netos que, dali a oitenta e cinco anos, esvaziarão suas gavetas e o bisbilhotarão brincando no jardim.

Numa outra foto, anterior à do meu avô, é Carnaval. Década de 20. Minha avó, que ainda nem era nascida, tenta identificar os presentes. A jovem odalisca é a tia Elvira. O pirata com a espada na boca: será o tio Mauro? A morena de olhos claros, vestido rodado, ninguém sabe quem é.

Quase escrevo que ela tem "o olhar triste das moças de antigamente", mas sou resgatado do anacronismo pela foto seguinte: quatro mulheres riem enquanto dois homens de terno branco, taças em punho, beijam as bochechas da estátua. Minha avó reconhece os homens. O da esquerda era um tal Humboldt, dono do sítio vizinho, fez fortuna com café, depois sumiu no meio de uma viagem de navio à Europa. Parece que saltou no mar. O outro homem era primo da tia Iaiá, fazia todos rirem imitando os parentes, contraiu tuberculose, curou-se, ninguém lembra que fim levou.

Aos poucos, esvaziando as gavetas, vai se formando entre mim e aquelas pessoas uma insuspeita cumplicidade. Não conheço ninguém ali, exceto meu avô. Estamos separados por quase um século, mas dividimos o mesmo espaço: piso no chão em que eles pisavam, sinto os cheiros que sentiam, vejo o sol refletido na Alcobaça e na Alcobacinha, sob o mesmo céu.

Volto pra morena de olhos claros, esquecida em seu Carnaval de 1920, e sinto uma espécie de déjà vu ao contrário: súbito, sou eu preso naqueles retratos, nas mãos de um homem que ainda está para nascer. "Esse de óculos, olhando umas fotografias, alguém sabe quem é?"


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