Folha de S. Paulo


AC, DC

Adams Carvalho/Folhapress
Ilustração Antonio Prata de 14.mai.2017

Na vila onde eu nasci e vivi até os 13 anos, no Itaim, nos referíamos ao senhor da casa 11 como "o Professor". O bigode, os óculos e o paletó justificavam o epíteto, embora a simpatia, o humor e a generosidade quebrassem qualquer ar professoral no mau sentido (de pompa ou pedantismo) que "professoral" possa ter. Antonio Candido era professor na acepção mais nobre da palavra: alguém que acreditava no conhecimento e no compartilhamento do conhecimento como forma de construir um mundo mais justo.

Isso, claro, eu só fui descobrir muito depois. Lá pelos meus quatro anos eu só sabia que "o Professor" tinha duas netas da minha idade, com quem eu brincava de esconde-esconde, e uma Brasília bordô, na qual eu dava a partida dia sim, dia não, no colo do meu pai, quando ele viajava com a dona Gilda.

Durante as férias, na adolescência (já morando longe do "Professor"), eu e um bando de amigos de classe média, da zona oeste, pegávamos ônibus da Viação São Geraldo e, 30 e tantas horas depois, descíamos em alguma vila de pescadores perdida no Nordeste. Lembro da primeira vez que fui pra uma dessas cidadezinhas, no sul da Bahia. Era pobre, não tinha hospital, padaria, nem orelhão, mas um garoto da minha idade, lá, sabia construir uma casa, uma canoa, subir em coqueiro, ia pro alto mar numa baleeira minúscula, sem GPS (coisa que nem existia), passava dias sem ver terra firme e voltava com o barco carregado de peixes.

Era uma pobreza completamente diferente da pobreza urbana. Aquelas pessoas eram cultas, não só no que se refere à realidade concreta (construíam o mundo em que viviam, enquanto eu, aos 15, não sabia sequer pendurar um quadro), como simbólica: compartilhavam da caudalosa cultura popular brasileira. Coco, Iemanjá, xote, exu, baião, Ogum, Festa de Reis... Já o imigrante pobre, em São Paulo, era pobre de tudo. Deixava para trás o mundo explicado pelos orixás e não chegava jamais a alcançar o mundo explicado pela tabela periódica. Ficava num purgatório econômico, num limbo cultural.

Em "Os Parceiros do Rio Bonito", estudo sobre os caipiras paulistas na metade do século 20, Antonio Candido captou com rigor etnográfico e delicadeza literária esse momento de ruptura, o momento em que um universo pobre materialmente, mas rico culturalmente, se esfacela para dar lugar à dupla pobreza. Antonio Candido trabalhava por um país onde houvesse a dupla riqueza. Na última página de "Os Parceiros...", fala dos "bens incompressíveis", os bens fundamentais para a existência: "Não são apenas os que se reputam essenciais à estrita sobrevivência do indivíduo, mas todos aqueles que permitem ao homem tornar-se verdadeiramente humano. Sob este ponto de vista, são incompressíveis a participação na beleza, a euforia da recreação, o prazer dos supérfluos".

Pouco tempo atrás, parecia que estávamos caminhando naquela direção. Agora, parece que a cada dia nos afastamos mais. Me disseram que, ultimamente, "o Professor" andava triste. Não deveria. A obra que deixou é uma das escadas que podem nos ajudar a sair do buraco, uma obra que joga luz sobre o nosso passado e aumenta a exigência do que temos que esperar do futuro: "A participação na beleza, a euforia da recreação, o prazer dos supérfluos". Que honra ter dado a partida naquela Brasília.


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