Folha de S. Paulo


A tigela da Tati

Adams Carvalho/Folhapress
Ilustração Antonio Prata de 26.mar.2017

O diâmetro da tigela de salada era um centímetro maior do que a largura do Majipack. Um centímetro -e esse centímetro que faltava para eu ou a minha mulher conseguirmos selar a tigela nos obrigava, diariamente, a esticar o plástico de um lado, a esticar o plástico do outro (com-muito-esmero-e-fé-em-Deus-porque-se-você-esticasse-de-menos-não-chegava-aqui-e-se-esticasse-demais-soltava-acolá); esse vazio que, após anos de prática, com concentração monástica, conseguíamos preencher, essa confirmação da superioridade do esforço sobre o desespero, essa luta que vencíamos todo dia, por pontos, perdíamos toda noite, por nocaute: bastava um de nós se servir de salada, profanando o delicadíssimo milagre de celuloide e o centímetro virava seis centímetros, três centímetros de cada lado, o Majipack enrugava todo, grudava em si mesmo, pousava sobre a salada como a vela frouxa de um navio fantasma cujo mastro houvesse tombado sobre o convés.

Por anos, ao abrir a geladeira, a cada manhã, minha primeira visão era o navio fantasma: o plástico troncho com uns fiapos de cenoura grudados e umas babas de beterraba escorrendo pelas ranhuras me lembrava, antes do café, que todo esforço é vão, que a vida é feita de fracassos, o tempo é vento que leva o viço, Sísifo arrasta a pedra morro cima, o destino a rola morro abaixo, Cronos devora seus filhos e essa barriga, ai, essa barriga, não vou perder nunca? Não, nunca, me devolvia o Majipack, diuturnamente, do fundo de sua lassa pança.

Por que não comprávamos uma tigela menor? Por que não comprávamos uma tigela com tampa? Por que não reaproveitávamos uma mísera caixa de sorvete Kibon? Seria tão simples, comenta o Excel(entíssimo) leitor. Amigo, se as coisas simples fossem tão simples as calotas polares não estavam derretendo, deputado corrupto não se reelegia e ninguém roía unha. Eu via a tigela e me resignava, como nos resignamos com tudo.

Hoje, porém, ao abrir a geladeira pela manhã, em vez do navio fantasma, vejo um iate: uma tigela com uma futurística tampa de silicone, vermelha. Penso, num átimo: era infeliz e não sabia e não sou mais. Penso: acabou o UFC com o Majipack. Penso: adeus baba de beterraba. O fiapo da cenoura jamais voltará a me lembrar do fiapo que sou na ordem geral das coisas. A tigela me trará a certeza de que os problemas têm solução, cada tigela tem sua tampa, cada coisa tem seu lugar -até mesmo a esteira elétrica que comprarei para combater a barriga, o colesterol, a ansiedade e outros males da civilização.

Abraço minha mulher, eufórico. Estamos livres. Agradeço. Minha mulher, contudo, diz que não tem nada a ver com isso. Nos debruçamos alguns minutos sobre o mistério, então lembramos do almoço, no penúltimo domingo.

A Tati Bernardi foi a encarregada de trazer a salada. Uma tigela com tampa vermelha de silicone é a cara da Tati Bernardi. Imagino que nunca houve uma tigela sem tampa na cozinha da Tati Bernardi. A Tati Bernardi nem sequer deve saber o que é ser escravo de um rolo de Majipack. Fico triste em descobrir que a tigela é da minha amiga. Não é fácil perder uma amiga.


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