Folha de S. Paulo


Fio dental

Fiquei na dúvida se começava esta crônica com "O ser humano não aprende com os próprios erros" ou "Os pequenos incômodos, não as grandes tragédias, é que fazem da vida um inferno". São dois começos tonitruantes, como convém a um tema tão profundo quanto o anunciado no título.

A primeira afirmação tem a vantagem de exprimir uma verdade, mas é esse também o seu defeito: de tão verdadeira, soa como uma dessas platitudes escritas em para-choque de caminhão. Já a segunda frase é duvidosa, mas traz ao menos a graça e o suspense da provocação irresponsável: será um calo pior do que um terremoto? Não creio. Um cronista, porém, precisa fazer suas escolhas: entre a fria verdade e uma mentira bem refogadinha, jamais deve titubear, de modo que...

Os pequenos incômodos, não as grandes tragédias, é que fazem da vida um inferno. Veja o caso do fio dental que arrebenta. Tenho 30 dentes na boca, o que resulta em 28 vãos, dos quais 27 não me causam problema algum: o fio entra tranquilamente, desliza de cá pra lá, de lá pra cá e leva embora os tributos indevidos que me recuso a pagar às cáries, ao tártaro e à placa bacteriana. Há um vãozinho, contudo, embaixo e à esquerda, em que os dentes estão próximos demais.

Em meus 37 anos sobre a Terra, encontrei uma única marca de fio dental capaz de penetrar essas encostas mortais e sair incólume. Todas as outras, das diáfanas fitas mentoladas aos robustos cabos oferecidos em banheiros de churrascaria, arrebentam no meio do caminho. Se eles só arrebentassem, tudo bem: a encrenca é que abandonam ali, na zona do agrião (literalmente, dependendo do cardápio), parte de sua matéria, piorando a situação.

Pois bem: eu sei que só uma marca dá conta do recado, que todas as outras se rompem, mas às vezes meu fio dental acaba, ou vou viajar e esqueço de botá-lo na mala -e é aí que chegamos ao para-choque de caminhão. O ser humano, não aprendendo com os próprios erros, tenta se enganar, pega o fio dental da mulher e pensa assim: "É só ir com jeitinho, só ir no ângulo certo que vai rolar". Pronto: o fio entra, rasga e parece que tem um caroço de goiaba empurrando um dente pra cada lado.

O ser humano não só não aprende com o próprio erro, como insiste. Ele inventou a clava e depois a flecha e depois a espingarda e depois a bomba atômica e, depois de arrebentar o fio pela primeira vez, o que ele faz? Tenta de novo. E arrebenta de novo. Ele desiste? Sai pra comprar o fio certo? Não: ele resolve enrolar o fio dental, fazer uma espécie de trancinha que, com sua dupla resistência e a fé em Deus, retirará os resíduos alimentares e os fiapos dos companheiros tombados em combate.

A trancinha rasga, claro. Os dentes pulsam, como se houvesse um caroço de azeitona entre eles. É agora que o ser humano desiste? Não. O ser humano vai seguir tentando, com fios triplos, quádruplos, com linhas de costura, de pesca, cabos de aço, de alta tensão, com o Trópico de Capricórnio e a Via Láctea, até que o cansaço ou a humilhação o atirem na cama.

Pensando bem, acho que me enganei ao duvidar que os pequenos incômodos, não as grandes tragédias, é que tornam a vida um inferno -o que me força a admitir que o ser humano, às vezes, aprende com os próprios erros. (Devia ter começado com "Veja o caso do fio dental que arrebenta.")


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