Folha de S. Paulo


O álbum da Copa

Comprei o álbum da Copa e me pergunto se isso representa uma tomada de posição. Afinal, até as 17h do dia 12 de junho, quando será dado o apito inicial para Brasil e Croácia, cada um de nós terá que resolver, internamente, em que ponto se encontra entre o "Pra frente, Brasil!" e o "Não vai ter Copa!".

A escolha já foi mais simples. Antes de 70, aliás, nem se escolhia: apenas se torcia. Então vieram os generais e parte da esquerda passou a torcer contra a seleção, pois via na vitória verde e amarela um triunfo verde oliva. Tirando esse breve período, contudo —e descontando os cartolas e o patriotismo comercial-televisivo—, o ethos do nosso futebol, desde que a bola voou para fora dos clubes e passou a rolar pelas várzeas, sempre foi popular e utópico. Ali estavam 11 garotos nascidos pobres; pretos, brancos e pardos, que haviam subido na vida unicamente por conta do talento; ali estava um país de terceiro mundo vencendo, com originalidade e graça, as nações mais poderosas do globo.

Tá, tá, eu sei que transplantar essa visão do gramado pra nação colaborou e colabora com o mascaramento e a preservação das nossas mazelas. Acreditar que somos 200 milhões de abençoados, originais e graciosos, num país igualitário e espontâneo que na hora agá resolve tudo com um toquinho de calcanhar é parte do delírio brasileiro.

O esporte, contudo, assim como a arte, é o lugar do delírio. Se for encarado racionalmente, não faz nenhum sentido: 11 homens de cá contra 11 homens de lá, tentando fazer uma esfera de couro e ar passar por cima de uma linha de cal —sem usar as mãos. É toda a carga irracional colocada no espetáculo que lhe dá sua razão de ser: ali projetamos tragédias individuais e coletivas, plantamos e colhemos significados. Não é do jogo, mas de nós que brota o sentido —e o sentido que a seleção tinha entre a gente, não como retrato do presente, mas como possibilidade, como ideal, me parecia belo e importante.

Há um clima pessimista no ar e um desejo, tanto à direita quanto à esquerda, de limar todos os discursos a favor do Brasil. Compreende-se: os serviços públicos são precários, há corrupção nos governos, basta abrir o jornal ou a janela para darmos de cara com horrores de todo o tipo. Mas será que a saída é desistir e admitir que foi tudo uma ilusão? Machado de Assis, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade, Villa-Lobos, o concretismo, Niemeyer, João Gilberto; nada presta, promessas falsas, roncos de um motor de arranque que não fez nem jamais fará o carro dar a partida.

Talvez seja bom colocar nossos mitos à prova, negar a pátria, como se nega o pai, para nos tornarmos adultos. Talvez, porém, fosse prudente ficar atento para não jogar a criança com a água do banho: o Brasil é foda, mas a bossa nova, como cantou Caetano Veloso em seu último disco, também é.

Falta um mês e um dia para soar o apito e, enquanto não descubro em que ponto me encontro entre o "Pra frente, Brasil!" e o "Não vai ter Copa!", vou colando essas figurinhas, meio envergonhado, meio esperançoso, sem saber exatamente de que lado está o povo, de que lado os generais.


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