Folha de S. Paulo


Brasileiro demanda literalidade na arte e aceita surrealismo na política

Anderson Astor/Folhapress
Protesto contra o fechamento da mostra Queermuseu, em frente ao Santander Cultural de Porto Alegre

O Brasil tem dado mostras de pendor para a literatura e a crítica de arte. A segunda denúncia de Janot, apesar de suas metáforas indianistas (arco e flecha), lembra uma novela de Balzac em volume (245 páginas) e personagens (mais de cem). Mas a escolha da "organização criminosa chefiada pelo presidente da República" como protagonista atesta que o gênero é o romance policial.

Temer discorda. Classificou o narrativa como "realismo fantástico". Conta com o apoio de Gabriel García Márquez, que, em 2000, declarou: "A primeira condição do realismo mágico, como seu nome indica, é que seja um fato rigorosamente certo, mas que pareça fantástico". Polêmica desnecessária, portanto: estão certos presidente e procurador, já que a denúncia é fantástica e verdadeira.

Questões literárias atravessam também a novela "O Juiz versus o Ex-Presidente", ambientada em Curitiba. O capítulo "A Delação Palocci", flashback armando novo desfecho, foi reprovado por Lula como "ficção hilariante". Já Moro exibiu pendor para os clássicos, ao defender a linhagem ficcional brasileira que nomeia como "doutores" aqueles que jamais escreveram tese de doutorado.

Segue também a novela do PSDB. Depois da ascensão e queda do galã Aécio, o partido aposta no suspense, deixando em aberto quem ocupará o cobiçado papel de candidato a presidente.

Em meio a tal sanha fabuladora, surgiu novo movimento artístico, que, como sói acontecer, iniciou -se pela crítica a artistas estabelecidos. Kim Kataguiri é o vanguardista da tendência, que se pode chamar de "literalismo". O jovem estudante deveria estar em um romance de formação, mas formação é o que lhe falta, como ficou patente em sua dificuldade de entender elaboração estética.

Incapaz de distinguir o que se apresenta e o que se representa, insurgiu-se contra o que rotulou como defesa de zoofilia, pedofilia e ideologia de gênero na exposição Queermuseu, em Porto Alegre. O crítico neófito não se arvorou a censor, mas por sua alfândega moral não passariam grandes mestres em pintura, escultura, música ou literatura.

Kataguiri e seu MBL proclamam-se liberais. Contudo, impor certo padrão de moralidade, convivência, política, educação e arte aos demais tem outro nome: chama-se autoritarismo.

O esquete talvez se esgotasse como outro espasmo diário de ignorância na internet se não envolvesse Estado (via Lei Rouanet ) e mercado (um banco).

O Santander, financiador da exposição, é de bandeira espanhola e podia ter revidado a crítica evocando Francisco de Goya y Lucientes, que teve que pintar a "Maja Vestida", depois que sua "Maja Desnuda" foi considerada pornográfica. Mas a atitude do banco se avizinhou de outra face da tradição castelhana, a franquista: cancelou a exibição.

A crítica moralista a obras de arte então transbordou. Propagou-se como as chamas da Inquisição. A peça "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu", com o Messias encarnado numa mulher transgênero, foi barrada antes de estrear no Sesc, em Jundiaí.

Um colega de profissão de Moro, Luiz Antonio de Campos Júnior, assim o decidiu, depois de instado pelo movimento Tradição, Família e Propriedade. Em Campo Grande, a polícia, com apoio de deputados, apreendeu no Museu de Arte Contemporânea o quadro "Pedofilia", parte da exibição Cadafalso, sob acusação de incitar o crime que o intitula.

Adeptos desse movimento pela moral e pelos bons costumes confundem literal e figurado. A competência humana básica de simbolizar e interpretar está a perigo quando um sentido unívoco se impõe e, neste caso, o mais pobre deles. Se a demanda é por literalidade, Jair Bolsonaro deve esperar protestos à sua porta para cumprir sua promessa: "Vamos satisfazer o desejo do mar de ganhar Minas."

Enquanto uns tomam tudo ao pé da letra, outros, na onda de "fake news" e "verdades alternativas", discutem apenas as "narrativas" dos atores políticos.

Se os aficionados pelas teorias da "pós-verdade" e os crentes na literalidade do juízo estético atentassem menos para costumes e narrativas e mais para a circulação de malas de dinheiro, suas flechas convergiriam com as de Janot rumo ao presidente.

O rocambolesco de cédulas encaixotadas, o grotesco da censura artística, a novela tucana, a tragédia petista e a farsa peemedebista dão razão a García Márquez e a seu discípulo Temer: a realidade é fantástica. No Brasil, demanda-se a literalidade na arte e aceita-se o surrealismo na política.

Aqui, o real é surreal.


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