Folha de S. Paulo


'Salvadores da pátria' costumam sabotar democracia em vez de salvá-la

Eduardo Anizelli - 15.mar.2015/Folhapress
SÃO PAULO, SP, BRASIL, 15-03-2015: Grupo de manifestantes exibe cartaz pedindo intervenção militar, durante protesto contra o governo da presidente Dilma Rousseff, na avenida Paulista, em São Paulo (SP). (Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress, COTIDIANO)
Manifestantes exibem cartaz pedindo intervenção militar durante ato na região da avenida Paulista

Saíram há pouco pesquisas com resultados à primeira vista paradoxais. A do Datafolha conta onde mora a popularidade do presidente. É no fundo do poço: 76% são pró-renúncia, 81% por impeachment e 83% por eleições diretas. Os cidadãos identificam o problema, a perda de capacidade de governar, e veem a saída da crise na saída do presidente. Maioria incontrastável grita "Fora, Temer".

Mas a aferição do DataPoder360, também de junho, informa aos apressados que 61% dos brasileiros preferem assistir ao fim de "House of Cards" tupiniquim do sofá de casa. Negam-se a ir às ruas demandar ao sistema político a troca imediata do mandatário avariado.

A antinomia deve assustar a parcela de ativistas e analistas, à esquerda e à direita, crentes de que diagnóstico correto —tomada de consciência ou pensamento racional— produz mobilização massiva.

O problema é que se incomodar com um estado de coisas e fazer algo a respeito não são sinônimos. Basta olhar o mal parado em casa —porta emperrada, cadeira bamba— para perceber que diagnóstico, prognóstico e engajamento são bem diferentes. Querer é uma coisa, fazer é bem outra.

O paradoxo some quando se distinguem três níveis de participação política: o do eleitor, o do político profissional e o do ativista.

O eleitor escolhe mandatários da forma mais simples, democrática e econômica já inventada, a de depositar voto na urna. Delega seu poder. Um representante o exercerá em seu nome, mediante remuneração, para que possa seguir seus ofícios e rotinas —assistir a aulas, operar doentes, dirigir ônibus. Na normalidade democrática, esta é a via preferencial da maioria das pessoas, na maior parte do tempo.

Este nível tem por contraparte uma carreira própria para gestão da vida pública. Os políticos são os que se dedicam a entender e representar anseios, valores e interesses tão difundidos quanto disputados na sociedade. E a discutir, negociar e implementar saídas para os problemas comuns. Este trabalho custa recurso escasso que o cidadão pouco se dispõe a despender com assuntos coletivos: o tempo.

Terceiro nível da política fica no meio do caminho. Trata-se do ativismo organizado. A abstração um indivíduo/um voto empana o fato de que todo mundo é membro de associações de interesse, grupos de status, comunidades de valores. Cada um tende antes a defender a comunidade concreta a que pertence a se bater por causas abstratas.

E mesmo as bandeiras mais tangíveis não são brandidas por indivíduos avulsos, mas por lobbies de elites sociais (ou, eufemisticamente, grupos de "advocacy") e em manifestações de movimentos sociais. É a via do engajamento e da pressão: empurrar profissionais da política a agir em favor de coletividades específicas.

Apenas nas grandes crises a maioria de indivíduos desengajados larga o sofá. Mas não fica muito na rua. Seu ativismo é episódico. Logo a política perde de novo para a rotina. Quem descobre na política sua vocação, como Guilherme Boulos e Fernando Holiday, acaba por adotá-la por profissão, seja em movimentos sociais, no espaço público, seja disputando cargos eletivos, nas instituições.

Os três níveis não se intercambiam, tampouco se excluem. Ao contrário. Sem o eleitor (daí a importância do voto obrigatório), a política seria apenas de conluios entre grupos de interesse e políticos profissionais. Nela teriam exclusividade os mais organizados, os mais bem relacionados, os mais endinheirados.

De outro lado, se excluídos ativismo e "advocacy" em nome de coletividades sociais específicas, a distância entre cidadãos e instituições seria abissal em sociedades de milhões de pessoas.

Por fim, sem políticos profissionais, que acumulam experiência ao longo de carreira específica, a gestão da vida pública ficaria à mercê de aspirantes tendentes a inventar regras "ab ovo", como se não houvesse aprendizado coletivo.

Tudo isso é óbvio, mas prudente repetir nestes tempos em que abundam sugestões mágicas e membros de elites sociais —empresários, militares, juízes— autodeclarados "não políticos" pleiteiam os primeiros postos do país.

O próprio Datafolha lançou dois desses à Presidência, já que nenhum deles se declarara candidato. Sergio Moro negou a candidatura, mas Joaquim Barbosa se apresenta de esfinge: "Estou mais para não ser". Não quer dizer que não será.

A política democrática é feita de contrapesos entre forças de representantes, manifestantes e eleitores. Cabe aos elementos da equação controlarem-se uns aos outros. A democracia não carece de salvadores da pátria para sobreviver. Ao contrário, eles costumam sabotá-la.

ANGELA ALONSO, 48, é professora de sociologia na USP, presidente do Cebrap e venceu o Prêmio Jabuti de Ciências Humanas com "Flores, Votos e Balas" (Companhia das Letras).


Endereço da página:

Links no texto: