Folha de S. Paulo


De greve em greve

Keiny Andrade/Folhapress
SAO PAULO - SP - 28.04.2017 - GREVE GERAL - SOBREVOO. Manifestantes se concentram no Largo da Batata. FOTO: KEINY ANDRADE/FOLHAPRESS
Manifestantes no Largo da Batata, em São Paulo, na greve geral de 28 de abril

No dia do trabalho, Temer falou à nação. Ou melhor, dirigiu-se aos 9% dos brasileiros que, fiando-se no Datafolha, pode considerar "amigos e amigas". Talvez por falar a tão poucos tenha dito o que disse. Filiou-se à longa linhagem dos modernizadores do Brasil.

Como estamos em maio e o tema é trabalho, podia ter associado sua "modernização" das leis trabalhistas à abolição da escravidão. Teria achado apoio na história. A mesma Câmara que autorizava o governo a descer o cacete nos protestos antiescravistas desde 1885 aprovou o fim do trabalho compulsório em maio de 1888. Não espanta, pois, que tenha reduzido o projeto abolicionista a lei enxutíssima, sem vírgula sequer acerca do direito dos libertos.

Ex-escravos e imigrantes herdeiros de sua sina continuaram em condições gêmeas às do cativeiro. Nem sempre, contudo, seguiram a velha "mensagem de otimismo e harmonia entre todos os brasileiros", que Temer torna a difundir. Ao longo da história republicana, vários movimentos sociais preferiram interpretação própria da "modernização", como expansão de direitos. E agiram para converter ideia em fato.

São Paulo viu isso no miolo de 1917, quando assistiu a sua primeira greve geral. A cidade parou. Aderiram categorias em cascata, demandantes de melhoras salariais e de condições de trabalho. Manifestantes daquele tempo se parecem mais com os de hoje do que se pode imaginar: muitos eram anarquistas, partidários das formas de ação direta.

A resposta das autoridades de então também segue na moda. Em 10 de julho de 1917, um jovem sapateiro espanhol foi baleado no estômago. A polícia de Goiânia acaba de mostrar a longevidade do padrão: golpeou com cassetete a cabeça de um estudante.

Não havia ainda instrumentos de contagem, mas o enterro do sapateiro virou a maior manifestação de protesto que os paulistanos tinham visto até então. Já na greve geral da semana passada, 35 milhões de pessoas pararam, segundo os sindicatos.

Números nunca são confiáveis em mobilizações políticas, porque os organizadores superestimam e a imprensa e a polícia subestimam os participantes, mas a paralisação foi significativa também por outros critérios. O primeiro foi a enorme visibilidade: #Brasilemgreve foi um dos trending topics mundiais do Twitter. Segundo, mobilizou para fora do perímetro tradicional. Nos protestos brasileiros, abundam servidores e estudantes. Lá estavam eles outra vez. Contudo, outros setores aderiram, caso de professores das escolas particulares, onde se processa a reprodução educacional da elite social paulistana.

Tudo tem seu outro lado. Para ficar nos colégios, parte de pais e de alunos se postou contra o protesto. Vários endossaram a sugestão paradoxal do prefeito de paralisar o trabalho em feriado e questionaram o direito constitucional à greve.

Presidente e prefeito reagiram ainda evocando a lógica da eficiência. Temer, em seu estilo anos 1940, atribuiu à reforma trabalhista o poder mágico de diminuir ações judiciais, baixar a inflação e aumentar o emprego. Nessa linha, o problema do país seriam os direitos excessivos do trabalhador, não os subsídios ao empresariado em todos os nichos e níveis do governo. Por seu lado, o prefeito-que-trabalha se insurgiu contra os que não prosperariam por serem dorminhocos. Temer demandou "harmonia" entre patrões e empregados. Anseia acomodação. Doria estabeleceu clivagem entre vagabundos e labutadores. Luta para remover privilégios dos primeiros que impedem os segundos de vencer na vida.

O pé de barro do raciocínio é que nem todos começam o dia com as mesmas condições iniciais. A maioria dos brasileiros nasceu em berço bem menos esplêndido do que o presidente, não estudou em escolas de elite e depende de garantias legais para jogar um jogo assimétrico, no qual os donos da bola são empresários como Doria.

Num país profundamente desigual, em que políticas redistributivas seriam medidas de mínima justiça, os dois mandatários apostam no receituário liberal. As soluções para os problemas coletivos, julgam, nascem do indivíduo. O presidente o disse no fecho do discurso: "É com trabalho que vamos vencer nossas dificuldades". "Acredite na força de cada um."

Pode ser que os eleitores acreditem mesmo e usem o superpoder do individualismo nas urnas, para defenestrar aqueles que cassarem seus direitos.


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