Folha de S. Paulo


A ficção da neutralidade e o poder moderador

"Não há mais bela ficção no direito constitucional do que a que imaginou Benjamin Constant com o seu Poder Moderador. O que a América do Sul precisa é um extenso Poder Moderador, um poder que exerça a função arbitral entre partidos intransigentes." Esta era a opinião de Joaquim Nabuco, em "Balmaceda" (1895), que tratava do Chile e, obliquamente, da crise brasileira de inícios da República. No Império, julgava, o imperador encarnava esse quarto poder, plainando acima das paixões partidárias e, por isso, capaz de dirigi-las para o bem do país.

A tese da necessidade de um poder moderador como estabilizador da ordem política para além da lógica partidária e da instabilidade produzida por sua ausência fez carreira no Brasil. Comparece em vários intérpretes da política desde os tempos de Nabuco.

O princípio reapareceu transfigurado no debate dos últimos anos. Com uma nuance: na ausência de quarto poder formal, recorreu-se ao terceiro. O Judiciário operaria como poder moralizador, capaz de dar linha ética aos partidos.

Essa ideia de um órgão infenso a interesses, regido por valores nobres, a começar pela justiça, grassou a ponto de elevar Joaquim Barbosa a super-herói nas capas de revista. Embora certo personalismo seja inescapável, o ideal passou de um rosto a outro –o da vez é o de Sergio Moro. E transcendeu pessoas para se encarnar em uma instituição: o Supremo Tribunal Federal.

Desde o julgamento do mensalão, graças à TV Justiça, o país vem conhecendo estratégias argumentativas e terminologia técnica que antes ignorava (quem não sabe o que é "decisão monocrática"?), assim como os maneirismos de cada ministro e a solenidade revestida por pomposa toga, capa que remete outra vez aos super-heróis.

No STF, falou-se aos quatro ventos impressos, televisivos, radiofônicos e virtuais, residiria a reserva moral da nação. Os juízes seriam os únicos habilitados para punir os "malfeitos"–eufemismo que invadiu o linguajar político querendo dizer tudo sem dizer nada. Alçou-se o Judiciário a paladino da luta nacional anticorrupção, investidura institucional do clamor das ruas.

A propalada neutralidade do poder independente foi, contudo, fazendo água ao longo da crise. Os juízes supremos decidem constrangidos por regras jurídicas, é verdade, mas também têm feito escolhas de natureza política, o que ficou patente no impeachment de presidente eleita pelo voto popular, sem que houvesse crime palpável. Politização da Justiça reiterada na deliberação acerca do destino do presidente do Senado.

Em vez de funcionar como a baliza neutra, o Supremo tem tomado partido, desnorteando os atores políticos e mesmo a parte da sociedade que o respaldava no papel de árbitro-mor.

As instituições fazem política, todas elas, assim como os indivíduos que as ocupam. Não existe poder infenso a interesses, valores e paixões. Como se viu no episódio Renan, a crença na Justiça cega é mera ingenuidade sociológica.

Nabuco atribuía ao poder moderador do Império a propriedade de aparar arengas entre partidos. Sua autonomia seria a maneira sábia de garantir a ordem política moderna contra caciques locais. Sem ele, o país seguiria o destino da América espanhola, empossando caudilhos.

Uma das funções do poder moderador no Império foi, de fato, arbitrar o jogo político. Falando disso no começo da República, Nabuco, então monarquista, esqueceu-se do que registrara como crítico do Império. Tratava-se de jogo baseado na exclusão, os partidos oficiais se resumiam a dois e a maioria da população vivia alheia ao voto e ao direito de candidatura.

E, se por sociedade moderna se supuser cidadania ampliada, a América espanhola, baseada em trabalho livre, se saía melhor que o reinado de d. Pedro, onde vigia a escravidão. O poder moderador, que não respondia ao voto, moderava uma briga de oligarcas. Serviria mal à democracia, em que todos –em princípio– participam em pé de igualdade.

Além do mais, nunca existiu poder acima dos partidos ou infenso a eles. Toda tentativa de entronizar um guardião moralizador, seja uma instituição, como o Supremo, seja um militar, como o inimigo de Nabuco, Floriano Peixoto, seja um juiz, como Sergio Moro, acaba por gerar apenas partidarização de outro tipo. A foto viral do magistrado com Aécio Neves bem o ilustra.

O episódio Renan avariou o que restava da imagem do Supremo como poder independente. O STF fez política. Sua isenção é um cristal partido.

Não passa, roubando a frase de Nabuco, de uma "bela ficção".


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