Folha de S. Paulo


Movimento Escola sem Partido é um partido cheio de contradições

Veio ao mundo o projeto de lei Escola sem Partido. Nasceu na família brasileira tradicional. Seu pai é o senador Magno Malta (PR-ES), e são seus irmãos os planos de redução da maioridade penal, de criminalização do aborto e de revogação do Estatuto do Desarmamento. Tem ainda laços de sangue com a estirpe xenófoba que se espalha por Europa e Estados Unidos. Com a saúde que exibe a linhagem, é de se esperar muitos novos rebentos. O Escola sem Partido, como seus parentes, exprime uma maneira de pensar a convivência em sociedade. A certidão de nascimento revela a identidade: ensinar sem partidarizar.

Divulgação
novembro 2015 Audiencia Publica
Audiência pública do movimento "Escola sem Partido"

O site da família detalha tim-tim por tim-tim a aversão à parentela oposta, a dos com-partido. São desafetos os portadores de valores contrários. Depoimentos de aderentes o elucidam. Temem que adolescentes aprendam sobre igualdade de gênero e combate à homofobia, discutam pressupostos religiosos e se filiem a movimentos sociais de esquerda.

A lista é mais longa, mas seu sumo é a crítica a qualquer estímulo à liberdade de pensamento. Os sem-partidos receiam a "contaminação ideológica" –como se também não exprimissem uma ideologia– e propagandeiam como antídoto uma "biblioteca politicamente incorreta". Mobilizam-se em defesa de família brasileira, instituição que julgam sob ameaça, cerceada em sua liberdade de transmitir valores.

A queixa exprime tensão antiga entre particular e universal. A família vincula por sangue e afeto e é o espaço mais potente de reprodução da hierarquia social. Dê uma olhada em volta: quem nasce em casa de médico, advogado, engenheiro, costuma adquirir idêntico diploma. Já a escola propicia, ou deveria, convivência compulsória com o diferente em corpo e alma. A experiência da diversidade incute a tolerância ao apresentar o distinto antes como complemento que como ameaça. A escola também provê, ou deveria, um escape da família.

Os sem-partido protegem a liberdade dos pais de transmitir suas crenças, mas a escola defende a dos filhos de produzir as próprias: proporciona estilos alternativos de pensar, crucial para constituição de pensamento autônomo. Provê uma liberdade que os sem-partido negam, a de dissentir dos consanguíneos.

Acima disse "a escola deveria" porque na prática sua versão privada espelha a segregação social, se restringe a um estrato, com mesmos hábitos, renda, cor e sobrenome. De seu lado, a escola pública, pelas dificuldades conhecidas, recebe apenas os sem renda suficiente para se refugiarem na escolarização privada. Cada um dos modelos tende a reproduzir uma ponta da pirâmide social. Sobra homogeneidade no grupo do alto, como no de baixo. Nenhum deles precisa da redução adicional da diversidade propalada pelos partidários do Escola sem Partido.

Isso mesmo: partidários. Os defensores do projeto falam em nome da nação, mas compõem partido no sentido lato da palavra. Os partidos políticos modernos apareceram simultaneamente aos parlamentos e movimentos sociais. São invenções ocidentais de fins do século 18, já demonstrou Charles Tilly. Primos-irmãos, movimentos e partidos se distinguem no grau de institucionalização, mas visam o mesmo: exprimir demandas sociais sobre assuntos públicos. No Brasil Império, o segundo termo aludia a grupo de interesse –"partido do café"– ou de ideias –"partido abolicionista". Partido como facção, a favor ou contra certa causa.

A palavra remete ao ato de partir e desvela a existência do todo que nenhuma parte representa por completo. Aponta que o sentido do conjunto está sob contenda. A sociedade é heterogênea, heterogêneas são suas aspirações. Nas democracias, as divergências resolvem-se no voto, em vez de pela força –ou por manobras, como no Brasil de hoje. Mas não desaparecem, nem desaparecerão por mandinga ou projeto de lei. E é bom que assim seja, que haja campo para desacordo. Nenhum partido é a nação, esse ente abstrato. A comunhão pátria é excepcional –saliente nas guerras e copas do mundo. No dia a dia, cada um tem seu time, sua religião, seu estilo de vida, seu partido.

Os apoiadores do Escola sem Partido têm o seu, compõem partido de ideias. Trata-se de contradição, mas não a única: negam os partidos, mas agem por meio de um deles –o Partido da República, que de republicano não tem nada.

O partido do Escola sem Partido propaga uma autoilusão, a de encarnar a pátria. Ora, os rumos da nação estão sempre em disputa. Sua encarnação em um líder ou confraria de ungidos só é possível quando se esmaga o adversário. Erdogan deu o exemplo na Turquia, ao fechar seis centenas de escolas.


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