Folha de S. Paulo


Insulamentos

Um torrão se desprega da Europa. No realismo mágico de Saramago, era a península Ibérica. O surrealismo político contemporâneo ancorou a ideia numa ilha. A geografia ajuda, os ingleses sempre se referiram aos ex-colegas de Comunidade Europeia como o "continente". Os ilhotas agora pularam do barco.

O salto no escuro aparvalhou locais e globais. A Inglaterra já pusera o destino na berlinda em 1975; os que então perderam, agora estão vingados. Vem mesmo do passado a recusa ao europeísmo: as senhoras e os senhores venceram os moços e as moças. É cristalina a régua geracional.

Quem olha os votos do Brexit logo avista a fronteira. Do lado europeu, fincaram-se os nascidos neste milênio (ou quase) e crescidos em mapa sem fronteiras: segundo a BBC, 73% dos que têm até 24 anos –e viverão cerca de sete décadas mais– preferiam ficar onde estavam. Já os que passaram dos 45 penderam ao contrário. Quanto mais velho, mais anti-Europa: o extremo etário, os de 65 anos ou mais, foi o mais empenhado (60%) em sair.

Na parte hispânica da península, cena similar. A Espanha votou no domingo passado decisão menos grave que a inglesa, mas que também indica cisão parecida. Metade do país rezou para a direita (Partido Popular e Cidadãos), outra metade se alistou à esquerda (PSOE, Partido Socialista Operário Espanhol, e Podemos), mas junto veio o embate de gerações.

A informalidade do candidato do Podemos, em mangas de camisa e rabo de cavalo, com seu séquito de universitários e artistas, cativa jovens como ele, mobilizados desde o 15M –a ocupação da Porta do Sol. Para esses, o estilo de política da geração anterior cheira a antiquário. Já os mais velhos, menos crédulos na renovação, aferram-se aos partidos, ternos e métodos de costume.

A cena, entretanto, não se restringe a conflito geracional. Há a guerra da província aos cosmopolitas. É verdade que Londres, cadinho multicultural, rechaçou a saída do bloco e Madri e Barcelona são já governadas pelo Podemos. Essas metrópoles, no entanto, não representam seus países, como Nova York, que não elegeria Donald Trump, não fala pelos EUA.

A ideia da Europa unitária fincou-se no princípio moral de que os cidadãos valiam todos o mesmo, independentemente de localidade, língua, religião ou etnia de nascença. O passaporte azul consubstanciou a crença. Mas cedo ela achou contraparte na intolerância. Temerosos de suas perdas, sovinas de seus ganhos, apegados a seus rincões, nacionalistas brotam por toda parte. Lá se foi o festejado cidadão global, substituído pelo odiado imigrante ilegal, que passou a encarnar todo o desconforto com os diferentes, tidos por feios, sujos e malvados. Assim ajuíza o cidadão médio, que pensa a política a partir do bolso e vê o mundo como extrapolação de sua aldeia. Gente ciosa da circunferência de seu pequeno horizonte, nem sempre barulhenta, mas usualmente numerosa.

A cena se complica porque nem todos os cosmopolitas são jovens e nem todos os jovens são cosmopolitas. Parte da nova geração abraça a tradição e assim a renova. O processo é patente no Cidadãos, nova direita, antípodas do Podemos em estilo (formal) e ideias (liberais).

Parece paradoxal que a juventude seja tradicionalista, mas parte dela sempre o é. Doutro modo, quem haveria de manter o status quo quando a morte forçar seus provectos guardiões a abandoná-lo?

O fenômeno da renovação geracional da tradição se avista também aqui. A três junhos de distância de 2013, floresce o que então germinou. O alarido por refundação nacional desembocou em programas distintos. Desmilinguiu a novidade autonomista, ao passo que surgiram rebentos da velha esquerda socialista e configurou-se uma terceira costela desta geração, a que, como numerosos ingleses, agita a bandeira do país, enaltece a tradição.

O nacionalismo, aqui, como na Europa, é o discurso típico dos que negam as diferenças sociais em nome de uma comunidade que planaria acima delas, a pátria. Apela a sangue, território, etnia comuns, à pertença a grupo homogêneo, não raro de base religiosa. Assim aponta para o contrário dos fundamentos da vida social moderna: a individualidade, a heterogeneidade, a diferença.

O manto da comunidade avança por toda parte. Em seu nome se constroem muros, como o que planeja Trump, em vez de pontes. Cercas que protegem os iguais, ao custo de excluir os divergentes. Como em "Jangada de Pedra", a linha imaginária que protege é também a que insula. Seu preço é o isolamento, como o daquele outro cidadão inglês, confinado a uma ilha: Robinson Crusoé.


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