Folha de S. Paulo


Encontrar o limite entre vigor e arbitrariedade

Jason Silva/Agif/Folhapress
O presidente cassado da Câmara, o ex-deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que foi preso pela Operação Lava Jato, deixa o IML (Instituto Médico Legal) de Curitiba nesta quinta-feira (20) após realizar exame de corpo de delito.
O ex-deputado Eduardo Cunha, que foi preso pela Operação Lava Jato, deixa o IML de Curitiba

A prisão do ex-deputado Eduardo Cunha coloca problema difícil para a opinião pública brasileira. Por constituir personagem politicamente nefasto, cujas reiteradas atitudes de escárnio conseguiram a proeza de unificar centro, esquerda e direita contra si, há comemoração pela medida decretada pelo juiz Sergio Moro.

De outra parte, o momento em que ela ocorre exige reflexão crítica, sob pena de coonestar o que parece uma escalada autoritária, ainda que sob o disfarce de rigor legal. O farol amarelo foi ligado quando Moro prendeu e soltou o ex-ministro Guido Mantega no espaço de algumas horas um mês atrás. Embora diversos precedentes tenham ocorrido, o episódio do ex-titular da Fazenda, pelo que teve de evidentemente arbitrário, despertou uma consciência mais ampla a respeito do risco que correm os direitos civis fundamentais no país.

Não obstante, Moro duplicou a aposta, mandando prender outro ex-ministro da Fazenda do PT, Antonio Palocci, poucos dias antes da eleição municipal. Talvez o histórico de problemas com os quais Palocci se envolveu no passado explique o silêncio que se seguiu à sua detenção.

Mas persistiu a percepção de que há autoritarismo em Curitiba. Cito, a propósito, o editorial da última edição de "Veja". Insuspeita de proteger Lula, como certamente se dirá da presente coluna, a revista mostra que Moro gostaria de voltar a uma época em que determinado ponto de vista só podia ser publicado após passar por censura prévia.

Para relembrar: em 11/10, o físico Rogério Cerqueira Leite publicou na Folha o artigo "Desvendando Moro", com uma visão negativa do juiz. No dia seguinte, o magistrado afirmava que a publicação de opiniões como a do conhecido professor "deveriam ser evitadas". Reparem: ele não queria o direito de discutir a análise do cientista, mas sim alertar o jornal para não voltar a editar manifestações como aquela.

Ao decretar a prisão preventiva de Cunha, Moro, cujo timing de ações é pautado, entre outros motivos, pela política e pela relação com a mídia, voltou a ganhar apoio que periclitava. O editorial da Folha a respeito evitou entrar na discussão sobre se havia necessidade técnica de prender o ex-presidente da Câmara. Já "O Globo" apoiou abertamente a decisão.

Moro sabe o que está em jogo. Afirma que "ninguém está propondo uma espécie de solução autoritária", mas sim uma "aplicação vigorosa da lei", devido ao quadro de "corrupção sistêmica" existente no Brasil. Encontrar o limite que separa arbitrariedade de aplicação vigorosa da lei é decisivo para manter o Estado de Direito. Oxalá a opinião pública consiga fazê-lo e, assim, preservar a liberdade que custou tanto construir.


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