Folha de S. Paulo


Somos todos americanos

Em período marcado pelo agravamento de tensões regionais (Ucrânia, Oriente Médio, Paquistão etc.), o restabelecimento de vínculos diplomáticos entre Estados Unidos e Cuba é, sem dúvida, um bom presente de Natal para os americanos do sul e do norte, preparado pelo papa argentino.

A aproximação dos dois países deixa o continente numa situação melhor, no que se refere à paz, do que os demais do planeta e permite sonhar com outros desdobramentos na região.

Houve no caso, é verdade, uma convergência histórica muito singular. De um lado, a decisão do governo cubano de abrir o regime, o que vem sendo realizado de maneira lenta, porém contínua, desde o afastamento de Fidel Castro, oito anos atrás. Note-se a diferença em relação ao que ocorre na Coreia do Norte.

De outro, a presença na Casa Branca de um presidente com intenções progressistas, ainda que em parte bloqueadas pela pressão conservadora de parte expressiva do eleitorado. Compare-se com a dureza alemã em relação ao resto da Europa.

Mas, por serem EUA e Cuba símbolos ideológicos presentes em inúmeros conflitos, a atitude corajosa de Barack Obama e Raúl Castro permite sonhar com distensão também em outras nações latino-americanas. A Colômbia, cortada por longa guerra civil, e a Venezuela, onde a divisão política foi longe demais, são lugares onde o reatamento de relações entre Washington e Havana poderia ajudar. Afinal, consolidar um espaço democrático para processar a aguda luta que vai prosseguir em função das profundas desigualdades sociais é prioritário para o sul da América.

No Brasil, as consequências alcançam, sobretudo, o plano ideológico. Setores da direita nacional ressuscitaram nos últimos meses, de maneira tola e artificial, fantasmas do passado. Como se a Guerra Fria não tivesse terminado há um quarto de século, chamam o governo, o PT e movimentos sociais de "comunistas" e pedem intervenção militar para afastar a ameaça "totalitária". A frase "vai para Cuba", dita em tom hostil e ameaçador, foi ouvida por inúmeros eleitores de Dilma neste ano eleitoral.

Ainda que inconsistente com os fatos, pois não há nenhuma medida autoritária em curso, a retórica passadista precisa ser levada a sério.

A experiência do fascismo mostrou que discursos delirantes podem cimentar blocos de poder quando encontram terreno adequado para tanto. Por isso, desarmar espíritos e evitar que sandices despropositadas ganhem foros de verdade é parte das precauções democráticas de rotina. Nesse sentido, o reconhecimento mútuo de norte-americanos e cubanos ajuda a esvaziar, também nestas bandas, impulsos à violência e à intolerância.


Endereço da página: