Folha de S. Paulo


2014 sob a pele

Critério único: não consultar anotações próprias nem listas alheias. Elencar só o que está fresco na memória, o que realmente marcou em 2014 (pode nem ter sido produzido neste ano, mas foi lido/ouvido/assistido nos últimos 12 meses).

Melhor filme com mulher pelada: "Sob a Pele", de Jonathan Glazer (2014). Scarlett Johansson, ligeiramente grávida e totalmente nua, talvez seja uma alienígena que talvez sequestre rapazes para talvez se alimentar da carne deles, em uma cidade que talvez seja Glasgow.

Tudo é sugerido e incerto neste filme perturbador. A trilha, da compositora experimental Mica Levi, 27, aprofunda o clima de gélida distopia. Vi em uma sessão com umas 20 pessoas, metade saiu no meio. Fracos.

Melhor filme sem mulher pelada: "O Homem Mais Procurado", de Anton Corbijn (2014). O fotógrafo e diretor de videoclipes Corbijn se mostra um cineasta completo, sem afetações, neste que foi o último filme concluído pelo ator Philip Seymour Hoffman (1967-2014).

Ele interpreta o chefe uma unidade tão secreta de espionagem que o próprio serviço oficial de inteligência a desconhece. Vidas cinzas, traições, tudo conduz a um final de pura desesperança.

Melhor romance chinês: "Decoded", de Mai Jia (ed. Farrar, Straus & Giroux, 2014). Best-seller na China, e sucesso de crítica nos países de língua inglesa, "Decoded" é o melhor romance que tem a ciência como pano de fundo desde "Os Sonhos de Einstein", de Alan Lightman. Nos anos 1950, Jinzheng é um gênio da matemática em uma universidade de província.

Recrutado para trabalhar para o serviço secreto do regime de Mao Tsé-tung, vai para a divisão de decifradores de códigos de comunicação. Criptogramas cada vez mais complexos, dos países inimigos, arrastam Jinzheng a um labirinto de loucura, sem volta.

Melhor livro mal escrito: "Twilight Over Burma: My Life as a Shan Princess", de Inge Sargent (ed. Kolowalu Books, 1994). Como ainda não fizeram um filme sobre essa história real? No começo dos anos 1950, um birmanês estudando nos EUA se casa com uma colega austríaca. Ela, de classe média, aceita morar com ele na Birmânia.

Quando o navio chega perto da capital, a noiva estranha os inúmeros barcos que os esperam, cheios de gente e flores. O marido finalmente revela: ele é um príncipe da etnia Shan, infinitamente rico. Segue-se uma vida de sonho, até que em 1962 vem um golpe militar. O marido, de ideias progressistas, desaparece. A mulher desafia os generais para encontrá-lo.

Esta autobiografia é escrita de um modo até simplório, o que é amplamente compensado pela história arrebatadora (o livro é de 1994, mas só li agora, depois de uma viagem a Mianmar, atual nome da Birmânia).

Melhor livro para entender o papa: "Pope Francis - Untying the Knots", de Paul Vallely (ed. Bloomsbury, 2013). Jorge Mario Bergoglio é um jovem padre, de caráter duro e muita ambição, subindo com rapidez na Companhia de Jesus. Mas maquinações da igreja —e acusações de que ele teria entregue dois padres de esquerda à ditadura militar argentina— interrompem essa trajetória.

Bergoglio cai em um ostracismo que parece sem saída. A partir de uma profunda revisão de posições (causada por culpa em relação aos sacerdotes esquerdistas, segundo Vallely), ele ressurge mais forte e conciliador, até chegar a papa.

Melhor romance injustiçado: "El Mundo de Afuera", de Jorge Franco (ed. Alfaguara, 2014). Injustiçado porque, assim como tantos excelentes escritores da Colômbia, Jorge Franco é praticamente desconhecido no Brasil.

Entre a fábula e a literatura policial, "El Mundo de Afuera" conta a história de um sequestro. Isolda, filha de um industrial colombiano e de uma dama alemã, é criada como uma princesa em um castelo nas montanhas que cercam a linda e mágica Medellín.

Um dia é levada por uma gangue de bandidos tão sanguinários quanto amadores. A ação transcorre na virada dos anos 1970/80, pouco antes de Medellín se transformar na infernal capital do narcotráfico de Pablo Escobar.

Videoclipe mais revoltante: "Shades of Cool", Lana Del Rey (2014). A monumental Lana Del Rey aparece neste vídeo dando mole para um tiozinho rockabilly. Mas é um tiozinho fraco, que anda meio torto e segura a xícara de café com o dedo mínimo em riste. OK, é tudo ficção, mas ainda assim dá tristeza ver Laninha se entregar a tamanho desclassificado.

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Se estivermos vivos, a gente conversa em 2015. Até.


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