Folha de S. Paulo


O chute de Nicolelis

Um movimento discreto, um raspão, difícil até chamar de chute. A bola correu uns poucos metros, um menino agarrou o balão, como dizem os locutores de rádio, e o levou para longe. Na transmissão da Fifa da abertura da Copa, tudo isso ocupou sete segundos, mas deu a sensação de menos.

Suficiente para fazer ferver uma polêmica que, pelo menos aqui no Brasil, está longe de terminar: essa demonstração científica, feita em público pela equipe do cientista Miguel Nicolelis, foi ou não um fiasco?

Aos não iniciados: Nicolelis, médico formado pela USP, brasileiro, palmeirense, trabalha há mais de 20 anos nos EUA. É professor titular de neurociências de uma das principais universidades do mundo, a Duke, na Carolina do Norte.

Há alguns anos, teve a ideia: na abertura da Copa no Brasil, montar uma demonstração pública de sua especialidade, a interface cérebro-máquina. Mais especificamente, fazer um paraplégico ficar em pé, andar e chutar uma bola, usando uma espécie de armadura metálica (exoesqueleto), comandada pela mente da própria pessoa.

Criou-se grande expectativa. Ao longo de dois anos, fiz três reportagens com Nicolelis para o "Fantástico", onde trabalho. Duas nos laboratórios dele nos EUA e a última, um pouco antes da Copa, já em São Paulo.

Articulado, persuasivo, neurônios em alta voltagem, Nicolelis tem fama de gostar da ribalta e de ser marqueteiro. Mas não foi assim que se comportou quando fizemos contato. Só depois de longa negociação —e alguma relutância—, concordou em abrir seu laboratório a nossa equipe.

Ele também tem fama de irascível, mas conosco foi um fidalgo. Nunca se atrasou, nunca perdeu a paciência. Fez de tudo para responder às perguntas mesmo enquanto atendia seus celulares, que nunca param de tocar, e recebia incontáveis recados da secretária.

No escritório, bagunçado e com móveis puídos (quase uma regra no mundo científico), veem-se objetos alviverdes e pôsteres de campanha do PT.

Nicolelis é petista. Mais que isso, lulista, e de primeira hora. Gosta de lembrar do dia em que a amizade começou, quando deu carona para Lula, depois de uma reunião, se não me engano, na Faculdade de Medicina da USP.

Eram os anos 80. O então estudante, Nicolelis fazia parte de uma chapa de esquerda, simpática ao nascente PT, que conseguiu tirar do centro acadêmico o Partido Comunista Brasileiro (a quem não é de São Paulo nem da época, cabe explicar que o PCB era a direita do movimento estudantil uspiano).

Essa opção política leva o cientista ao centro de um tiroteio. Aqueles que detestam tudo o que vem do PT e do governo federal o cobrem de ataques e ironias. Os que adoram tudo o que vem do PT e do governo federal, esses tratam Nicolelis como um luminar insuperável da ciência.

De ambos os lados, a meu ver, cometem-se injustiças.

Nicolelis não é um enganador, não torrou dinheiro público (R$ 33 milhões da Financiadora de Estudos e Projetos, Finep) para uma demonstração frustrante. Na verdade, ele trafega em um patamar de prestígio internacional atingido por muito poucos cientistas brasileiros.

Tem visão empreendedora e capacidade de trabalho incomuns. Dezenas de pesquisadores de elite trabalham sob seu comando. Colabora com centros de vanguarda no mundo todo. Só publica em revistas científicas de primeira linha. O que é um sonho para milhares de pesquisadores de países periféricos —emplacar um artigo na "Nature", na "Science", no "Journal of Neuroscience"— é quase rotina para o grupo de Nicolelis.

Mas Nicolelis não é um semideus, como apregoam seus aduladores, nem a demonstração que fez na Copa é um grande marco científico. Claro que havia ali ciência e tecnologia de ponta -muitos trabalhos de doutorado e pós-doutorado por trás do chute discreto. Mas, culpa ou não da transmissão da Fifa, o fato é que o experimento não teve impacto visual ou emocional.

O professor de direito e especialista em bioética Hank Greely, da Universidade Stanford, foi ouvido pela revista "Wired" sobre a demonstração de Nicolelis. Criticou: "Se você quer fazer um espetáculo, então é bom que seja espetacular". A "Wired" insistiu: "Em termos gerais, isso foi bom ou ruim para a ciência?". A resposta pesou como chumbo: "Nem uma coisa nem outra".


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