Folha de S. Paulo


Uma africana na Coreia do Norte

Genocida como Idi Amin, ladrão como Bokassa, megalômano como Mobutu Sese Seko. Difícil encontrar alguma qualidade redentora ao se pesquisar o nome do político Francisco Macías Nguema, personagem obscuro da Africa pós-colonial.

Macías comandou a independência da pequena Guiné Equatorial, que em 1968 se separou da Espanha. Chegou a presidente por eleição direta. Como no caso de tantas falsas promessas africanas, Macías rapidamente mandou a democracia para o lixo. Tornou-se o ditador insano de seu pobre país.

Pária da política internacional, ele procurou ajuda de outros regimes excluídos pela comunidade diplomática. Encontrou os braços abertos de Kim Il-sung (1912-1994), então ditador da Coreia do Norte, avô do atual dirigente norte-coreano, Kim Jong-un.

À medida que se estreitavam os laços entre a Guiné Equatorial e a Coreia do Norte, fechava-se o cerco ao tirano Paco Macías. Temendo uma chacina contra a família, Macías despachou mulher e três filhos para o único lugar que considerava seguro: a Coreia do Norte de Kim Il-sung. Era 1979.

Começava aí uma uma trajetória pessoal que, se surgisse na ficção, seria descartada por falta de verossimilhança.

Falo da vida de Monique Macías, uma das filhas do ditador guineense. A mãe dela durou pouco na Coreia do Norte. Assim que se recuperou de uma operação da vesícula, deixou os filhos por ali mesmo e se mandou. Poucos meses depois, o pai de Monique foi deposto e assassinado por um sobrinho, Teodoro Obiang, até hoje no poder na Guiné Equatorial.

Recém-empossado, Obiang foi até a Coreia buscar os jovens parentes. Mas Kim Il-Sung mandou-o passear. Ficou com as crianças e abrigou-as em seu palácio. Resultado: Monique e seus irmãos Francisco e Mary-Bell viveram em Pyongang de 1979 a 1994.

Nesses 15 anos, os três guineenses, mais os dois filhos de um ex-presidente do Benin, foram os únicos estrangeiros falantes de coreano com residência fixa na capital.

Monique foi enviada a escolas militares de ensino básico, médio e superior. Moça alta, negra, corpulenta para os padrões asiáticos, era, junto com a irmã, uma das duas estrangeiras a estudar nessas instituições de elite. Não é difícil encontrar na internet fotos dessa época. De tão improváveis, chegam a parecer montagens (confira: is.gd/ONRKUQ).

Hoje, Monique tem o coreano como sua primeira língua. Publicou recentemente uma autobiografia... em coreano. Também escreve, em inglês, desde fevereiro passado, uma coluna em um site dedicado a política norte-coreana, o nknews.org.

Eu jamais saberia da existência de Monique se não fosse por uma outra figura incomum: o suíço Felix Abt, autor do livro "A Capitalist in North Korea" (Um Capitalista na Coreia do Norte).

Aparentemente autopublicado (não consegui encontrar nenhuma indicação de editora), "A Capitalist in North Korea" procura, assim como a coluna de Monique Macías, retratar a vida na Coreia do Norte a partir de uma perspectiva de "insider", e não de desertores do regime ou de diplomatas e "ongueiros" que passaram pouco tempo no pais.

Abt chegou à Coreia do Norte como representante de uma multinacional cujo dono, um aristocrata suíço, decidiu investir no país como "desafio intelectual". Por pressões internacionais, o conglomerado se retirou, mas Felix Abt decidiu ficar. Abriu, em estranha parceria com o governo norte-coreano, uma indústria de produtos farmacêuticos. Passou sete anos lá.

O livro é interminável (a versão eletrônica não indica o número de páginas, mas a sensação é de umas 5.000). O texto não parece ter sido escrito em um programa de edição, como Word, mas sim em Excel. O estilo empolga tanto quanto uma planilha de custos.

Mesmo assim, possibilita um olhar único sobre a vida "normal" da Coreia do Norte. O sistema de saúde, por exemplo, é bastante elogiado por Abt. Ele também avalia que muito da propaganda totalitária do regime entra por um ouvido e sai pelo outro dos norte-coreanos. E que estes estão muito distantes de ser os zumbis que o Ocidente imagina.

Intrigado com a figura de Abt, passei a acompanhá-lo em redes sociais. Acabei achando um texto em que ele recomendava a coluna de Monique Macias no nknews.org. Um novo mundo se abriu.

Busque na web pelos nomes citados neste texto. Você vai descobrir não um, mas vários labirintos escuros, habitados por nerds interessados em Coreia do Norte. Mergulhe nesse universo paralelo. Monique e Felix esperam por nós.


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