Folha de S. Paulo


O amor ficou de fora

RIO DE JANEIRO - Michel Temer tem um estilo "déjà vu" - no discurso de posse, mandou uma mesóclise que doeu -, mas daí a voltar aos tempos da República Velha? É o que sugere, ao adotar o "Ordem e Progresso" como slogan de governo. A marca visual, com abóbada celeste, é jogada de marqueteiro para aproveitar a onda de manifestações contra Dilma Rousseff, nas quais a presença do auriverde pendão era obrigatória.

O dístico - como até alguns deputados devem saber - inspira-se no lema positivista "O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim", criado pelo francês Augusto Comte, que no século 19 misturou filosofia, religião e ciência natural numa tentativa de resolver as questões sociais.

Para a bandeira, pegamos a ordem (que, se exagerada, pode descambar em repressão) e o progresso (aquela luzinha no inacessível fim do túnel). O amor ficou de fora.

Mas não de "Positivismo", de Noel Rosa e Orestes Barbosa. Numa tarde de 1933, Noel chegou ao Café Nice, parada obrigatória dos compositores da época, e recebeu de Orestes a letra para musicar. O samba parece falar diretamente ora com a presidente afastada, ora com o presidente interino.

"Vai, orgulhosa, querida/ Mas aceita esta lição/ No câmbio incerto da vida/ A libra sempre é o coração/ O amor vem por princípio, a ordem por base/ O progresso é que deve vir por fim/ Desprezastes esta lei de Augusto Comte/ E fostes ser feliz longe de mim." Não serve como luva para Dilma?

"A intriga nasce num café pequeno/ Que se toma para ver quem vai pagar." E estes versos, quem não reconhece neles o dedo conspirador de Temer?

No fim, Noel e Orestes falam de nós, brasileiros que não moramos em palácios de Brasília: "Para não sentir mais o teu veneno/ Foi que eu resolvi me envenenar". Com o ódio que grassa por aí.


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