Folha de S. Paulo


Pedalada internacional

Sonhei que a presidente Dilma mandava construir um largo fosso ao longo de nossa fronteira. Começava no norte do Amapá e ia até o sul do Rio Grande do Sul. A ideia era isolarmo-nos do resto do mundo. "Vamos transformar o Brasil em uma ilha!", celebrava.

Haveria algumas (3) pontes, mas elas demorariam anos para serem construídas, seriam mal conservadas e cobrariam um pedágio altíssimo.

O sonho acabava com a presidente dizendo, à la Greta Grabo: "I want to be alone".

Ronaldo Bernardi - 6.fev.2016/Agência RBS/Folhapress
Dilma Rousseff pedala em Porto Alegre, onde esteve para visitar a filha e os netos, durante o Carnaval
Dilma Rousseff pedala em Porto Alegre, onde esteve para visitar a filha e os netos, durante o Carnaval

Acho que o que sugestionou o meu sonho foi a criação de uma comissão, publicada na semana passada no "Diário Oficial".

A Comissão Interministerial de Participação em Organismos Internacionais (Cipoi) é composta por representantes da Casa Civil e dos ministérios da Fazenda, do Planejamento e das Relações Exteriores.

O nome pode ser pomposo e sugerir enfoque político, mas, não se engane, a visão de mundo é contábil. O que o governo quer mesmo é cortar os custos da presença do Brasil no mundo.

Não há nada de mal em querer cortar custos –ainda que essa vontade se origine na necessidade vergonhosa de cobrir deficits provocados por incompetência e corrupção.

No entanto, ainda que compreensível, essa sanha do governo por recursos não pode nunca ameaçar a articulação do país no mundo, desconsiderando os valores políticos e imateriais relacionados à participação brasileira em organismos internacionais.

Haverá, decerto, organismos desnecessários ou anacrônicos, e a participação do Brasil deverá, nesses casos, ser repensada. Mas há mais coisas entre o céu e a Terra do que supõe a vã contabilidade –e que devem receber consideração prioritária por parte da comissão.

Algumas delas:

1) A tradicional preferência da diplomacia brasileira por negociações multilaterais decorre de que, em organismos internacionais em que cada país tem um voto, as assimetrias de poder entre países ricos e pobres são minoradas. As decisões são mais democráticas, e os países mais fracos têm a possibilidade de defenderem posições comuns coletivamente. Isso os torna mais fortes.

2) O Brasil deve quase US$ 1 bilhão em contribuições a organismos internacionais. O grosso dessa dívida, contudo, é com organizações como as Nações Unidas, a OEA e a FAO, das quais não há saída honrosa possível. Na maior parte dos organismos, os desgastes à imagem do Brasil seriam claramente superiores à economia financeira auferida com a saída.

3) As contribuições aos organismos internacionais não são determinadas de forma aleatória, e, sim, com base em fórmulas definidas coletivamente, que se aplicam a todos. O princípio, em geral, é a capacidade de pagamento de cada país, determinada com base em dados econômicos objetivos. O Brasil paga o que, proporcionalmente, todo mundo paga.

4) As dívidas em atraso são obrigações legais, aprovadas pelo Congresso e incluídas na Lei do Orçamento Nacional, são leis e têm de ser cumpridas. A eterna postergação do pagamento das contribuições, como se faz, é pedalada internacional à custa da imagem do país.

Os danos à imagem internacional do Brasil provocados pelos desmandos do atual governo já causaram mais prejuízo do que deveriam. A cara mais feia do país está exposta ao mundo: lama, zika, crise e crime. Não é hora de piorar as coisas.

Por isso, a despeito das urgências orçamentárias, os membros da comissão devem agir de forma responsável e ater-se ao critério soberano do benefício político que a participação do Brasil nos organismos nos trará a longo prazo. Devem levar em conta que o Brasil continuará além deste governo.

O trabalho multilateral parece lento, mas é historicamente relevante. É nos foros de debate multilateral que as desigualdades internacionais se enfrentam e se mitigam. É ali, também, que se discutem, de forma democrática, os temas de importância global ou regional, que transcendem as fronteiras dos países. As instituições brasileiras devem privilegiar esse entendimento.

Abandonar esse princípio compromete a tradição diplomática brasileira que se consolida desde a participação do país na Conferência de Paz da Haia, de 1907. A presidente pode não ver ou não entender, mas essa tradição existe e é propriedade do país Brasil, e não do governo míope e limitado que temporariamente o governa.

O Brasil não quer se tornar uma ilha isolada no Mar da Lama.


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