Folha de S. Paulo


Dura lex, sed lex

Um belo dia abre-se uma fenda na divisa da Espanha com a França. A Península Ibérica começa a desprender-se da Europa e passa a navegar, solta, sem destino, pelo Oceano Atlântico.

Essa história é contada pelo escritor português José Saramago em seu romance "A Jangada de Pedra", de 1986. No livro, Saramago alude ao isolamento de Portugal e Espanha frente à consolidação da União Europeia.

A mesma história serve para exemplificar o que ocorreu em relação à América do Sul e o resto do mundo nos últimos anos.

Brasil, Argentina e Venezuela, entre outros países da região, elegeram governos de esquerda, de viés populista, que implementaram políticas sociais necessárias, financiadas pela alta dos preços das matérias primas no mercado internacional.

Por razões ideológicas, afastaram-se de governos liberais. Os processos de integração deixaram de ser prioridade política. No âmbito do Mercosul, por exemplo, suspendeu-se o Paraguai para admitir-se a Venezuela num episódio lamentável.

Diante da necessidade de apresentar proposta comum, não avançaram nas negociações para um acordo de livre comércio com a União Europeia. Todo mundo era protecionista. Os resultados em termos de integração foram baixíssimos.

O fato de a Argentina ter dado calote no sistema financeiro internacional em 2001 e de a Venezuela ter começado a prender opositores políticos não ajudou a tornar a região mais atraente aos olhos do resto do mundo.

Mas o que você faz quando tem esses companheiros de negociação? Nada. Quem ouve a retórica internacional de Nicolás Maduro e Cristina Kirchner pode bem imaginar a dificuldade de negociar contra tanta manipulação e ressentimento.

O mundo é sempre apresentado como conspirador. Somos "nós" contra "eles". A desculpa para essa posição defensiva é proteger a economia, a indústria, o mercado. Mas proteger para quem? Para os financiadores de campanha de cada dia?

Esse modelo protecionista populista, corrupto e fiscalmente irresponsável, se esgotou. Basta ver as perspectivas negativas das economias argentina, brasileira e venezuelana.

Por outro lado, países da região que resolveram fazer o movimento contrário e se liberalizar apresentam perspectivas econômicas positivas, como o Chile e o Peru, que criaram, junto com a Colombia e o México, a Aliança do Pacífico.

O sinal político mais forte desse esgotamento é a eleição pelos argentinos, neste fim de semana, de um presidente de centro-direita, Mauricio Macri. A articulação diplomática Caracas-Planalto-Casa Rosada ruiu. Já era tempo.

No próximo dia 6, haverá eleições parlamentares na Venezuela. O governo venezuelano cria problemas para a presença de observadores internacionais, e o presidente Maduro disse na imprensa que não respeitará os resultados das urnas caso a oposição vença.

Ainda em campanha, Macri criticou a forma como se deu a entrada da Venezuela no Mercosul. Nesta segunda (23), anunciou que, caso as eleições não sejam limpas e os líderes de oposição, soltos, invocará a cláusula democrática do acordo para pedir a suspensão da Venezuela.

O presidente Macri está correto. O governo brasileiro deveria seguir seu exemplo. Associar-se a Nicolás Maduro é uma furada ética e pragmática. E, além disso, dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é lei. A cláusula democrática do Mercosul serve para isso mesmo: suspender governo autoritário posando de bonzinho.


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