Folha de S. Paulo


De Ota Benga a Adolf Hitler

Ota Benga nasceu no povo Mbuti, nas florestas equatoriais às margens do rio Kasai (atualmente República Democrática do Congo). Sua família fora exterminada por forças do rei Leopoldo 2º, da Bélgica, e ele acabou nas mãos de traficantes de escravos. Um antropólogo americano resgatou-o e o levou aos Estados Unidos para ser exibido como curiosidade na Exposição Universal de Saint Louis, em 1904.

Dois anos depois, em Nova York, lia-se a seguinte informação em sua jaula no pavilhão dos macacos do Zoológico do Bronx:

"O Pigmeu Africano, 'Ota Benga'.
Idade: 23 anos. Altura: 1m49. Peso: 49 kg.
Trazido do Rio Kasai, Estado Livre do Congo, África Central, pelo Dr. Samuel P. Verner.
Em exibição todas as tardes no mês de setembro"

É isso mesmo. Entre o final do século 19 e a quase metade do século 20, existiam zoológicos humanos em cidades como Paris, Hamburgo, Antuérpia, Barcelona, Londres, Milão e Nova York. Nesses zoológicos, gente negra e de povos considerados exóticos era exibida como animais, "para fins científicos e educacionais".

Alguns dos humanos em exposição recebiam salário, mas outros eram coagidos ou sequestrados. Suas acomodações eram em geral inadequadas e a alimentação, imprópria. Muitos morriam no primeiro ano de cativeiro.

Os exemplares nas mostras eram "colhidos" por exploradores em todo o mundo. Pegava-se gente na África, Ásia, Oceania e América Latina. Em 1881, por exemplo, comerciantes europeus sequestraram 11 indígenas do Chile para exibi-los como animais em feiras etnológicas (130 anos depois, em 2010, o governo chileno repatriou seus restos mortais).

Esse tipo de atração era popular. Apenas em seus primeiros seis meses, a Exposição Mundial de Paris de 1889, que tinha 400 negros em exibição, atraiu 34 milhões de visitantes.

Os organizadores procuravam em geral apresentar um quadro evolutivo da etnia humana. O viés era o do colonizador europeu e suas conquistas globais. Culturas não europeias eram apresentadas como primitivas e não europeus, como subespécie.

Diferenças culturais eram apresentadas e passavam a ser entendidas como diferenças biológicas. Para justificar a dominação e o racismo, negavam-se as ideias de igualdade entre os indivíduos, de humanidade comum e da proteção da dignidade humana, refinadas pela Revolução Francesa e tão centrais à noção moderna de democracia.

O desrespeito aos direitos humanos leva a desumanização. Na jaula que dividiu com chimpanzés e orangotangos, Ota Benga era apresentado não como humano, mas como "o elo perdido".

Um homem com a dignidade negada perde a noção de se é homem ou é bicho. É muito fácil sair de Ota Benga e chegar a Adolf Hitler.

(A propósito: Depois de sua exibição no Zoológico em Nova York, Ota Benga foi resgatado por religiosos e instalado no Estado da Virgínia. Impossibilitado de voltar à África, cometeu suicídio aos 32 anos de idade.)

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