Folha de S. Paulo


Barbárie não é valor cultural

O que você faria se, durante a noite, fosse acordado por gritos de crianças sendo estupradas? Mais ainda, o que você faria se, no dia seguinte, tivesse de trabalhar com o estuprador?

Se você for um militar americano baseado no Afeganistão, melhor não fazer nada. Vire-se para o lado e finja que aqueles gritos não existem ou, melhor, convença-se de que aqueles gritos infantis, enquanto você tenta dormir, não são humanos.

Na semana passada, vieram a público alegações de que militares americanos no Afeganistão teriam recebido instruções para ignorar abusos sexuais contra crianças cometidos por chefes tribais aliados.

O governo dos EUA negou ter dado a instrução. No entanto, declarou que a questão de abuso sexual infantil é de competência das autoridades judiciárias afegãs e pretende aposentar compulsoriamente o sargento Charles Martland, que serviu duas vezes no Afeganistão.

A razão? Martland atacou fisicamente um comandante afegão aliado que mantinha um garoto de dez anos acorrentado à sua cama para fins sexuais. Se, no meio da noite, desse vontade, o menino estava lá para seu uso.

A escravidão sexual de garotos por homens adultos é prática comum em áreas da Ásia Central. Há séculos, homens ricos e poderosos usam garotos pobres e vulneráveis como substitutos sexuais de mulheres. Conjuga-se uma série de atos horrorosos, como exploração sexual, escravidão e pedofilia. No Afeganistão, chama-se bacha bazi ("brincadeira com garotos").

Os meninos aprendem danças femininas, vestem roupas de mulheres e usam maquiagem. Também servem como objetos sexuais. Em geral, são usados enquanto imberbes e depois são descartados. É simbolo de status possuir garotos para deleite próprio ou de amigos ou associados. É como ter uma casa com piscina.

Em um documentário realizado em 2010 ("The dancing boys of Afghanistan", de Najibullah Quaraishi), Dastager, um comerciante rico na província afegã de Takhar, declara já ter possuído entre 2.000 e 3.000 meninos.

O bacha bazi é ilegal no Afeganistão, mas pouca gente é processada por isso. Seus praticantes são, em geral, ricos e poderosos, em total assimetria com as vítimas, que são crianças de famílias desfavorecidas, em área de guerra.

As autoridades afegãs alegam questões de ordem cultural para justificar o problema e a omissão. Pelo menos, na prática, é o que também parecem estar fazendo os Estados Unidos.

Escorar-se em valores culturais —nesse ou qualquer outro tema— para preservar práticas injustificáveis de mais fortes contra mais fracos é coisa de conservador cara de pau.

Valores culturais são práticas que a gente cria e resolve repetir; quando são iníquos têm de ser substituídos. Cultura nunca foi um valor absoluto. Não podemos ficar prisioneiros da cultura da barbárie.

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