Folha de S. Paulo


Não dá para passar a mão na cabeça de ditador

Ouvi falar de Angola pela primeira vez quando, na minha escola, em São Paulo, apareceu um menino que parecia brasileiro, tinha sotaque de português, mas era angolano.

A professora nos mostrou no atlas de onde ele vinha, e eu concluí que não era longe: se uma pessoa saísse do Brasil e nadasse em linha reta, um dia chegaria lá.

Essa proximidade geográfica facilitou que, no período colonial, a rota Angola-Brasil fosse uma das mais utilizadas pelos traficantes de escravos.

A respeito da escravidão no Brasil, padre Antonio Vieira afirmou: "sem negros não há Pernambuco, e sem Angola não há negros".

Ou seja, se você é brasileiro e afrodescendente, é bem capaz que parte de suas origens se encontre em terras angolanas.

Historicamente, os dois países permaneceram próximos.

O Brasil foi o primeiro a reconhecer a independência de Angola em 1975. Estabeleceu-se um fluxo humano e de negócios importante.

Várias grandes companhias brasileiras (Petrobras, Odebrecht, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão) atuam ou atuaram em Angola. Temos voos diretos diários, e há dezenas de milhares de brasileiros trabalhando no país.

Nossa proximidade com Angola nunca foi questionada, mas agora merece ser.

O governo do presidente angolano José Eduardo dos Santos é um dos mais longevos da África.

Santos assumiu o poder há 36 anos, com a promessa de reconstruir um país devastado por décadas de guerra civil.

Riquíssima em petróleo e em recursos naturais, Angola apresentou desempenho econômico notável no período em que durou a alta internacional do produto.

Entre 2001-2010, teve as maiores taxas médias de crescimento do mundo.

O crescimento enriqueceu uma cleptocracia. Os recursos nacionais estão nas mãos de uma elite que os privatiza em benefício próprio.

A Human Rights Watch relatou que, apenas entre 2007-2010, mais de US$ 32 bilhões desapareceram dos cofres públicos de Angola.

Enquanto isso, a taxa de mortalidade infantil seguiu sendo uma das mais elevadas do mundo, e cerca de 70% da população vive com até US$ 2 por dia.

A propósito: a mulher mais rica da África é angolana –e filha do presidente José Eduardo dos Santos.

Desde 2010, Angola tem uma Constituição que assegura livre expressão. Nesse quadro, é natural que exista oposição política ao governo. As pessoas criticam o que é ruim.

No entanto, a oposição tem sido reprimida.

Em maio, um jornalista e ativista anticorrupção foi condenado a seis meses de cadeia por "difamar" militares angolanos envolvidos em tráfico de pessoas em minas de diamante (o livro em que a denúncia foi feita, "Diamante de Sangue: corrupção e tortura em Angola", tem acesso liberado pela editora Tinta da China.)

Recentemente, a polícia do presidente José Eduardo dos Santos invadiu uma casa em Luanda e deteve cerca de 15 ativistas que participavam de um grupo de leitura (discutiam "Da ditadura à democracia", de Gene Sharp).

Consta que foram encapuzados e levados a cárcere por "atentar contra a segurança do Estado angolano."

Em editorial, o jornal português "O Público" chamou a ação do governo de José Eduardo dos Santos de fascista e comparou-a às ações da ditadura salazarista.

Há vários presos de opinião em Angola. Fazem parte de um pequeno, mas crescente, número de pessoas que contesta o monopólio de poder de José Eduardo dos Santos e de seu partido político.

A defesa e a promoção dos direitos humanos devem orientar a política externa do Brasil. Não sou eu quem diz, é a Constituição Federal.

Pela proximidade que nos une, o governo brasileiro não pode ignorar a supressão da oposição em Angola.

A diplomacia terá suas maneiras de agir, mas não pode fechar os olhos para o que acontece do outro lado do Atlântico.

Não dá para passar a mão na cabeça de ditador, mesmo que seja ditador de país irmão.


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