Folha de S. Paulo


Escravidões

Nesta semana, João Paulino Barbosa, lavrador e neto de escravos, viajou 250km, de ônibus, para celebrar a abolição da escravatura.

Foi de Desterro do Melo, em Minas Gerais, até Petrópolis, no Rio de Janeiro, para depositar 127 rosas no túmulo da Princesa Isabel.

Ofereceu uma flor por cada ano desde a assinatura da Lei Áurea. O buquê todo pesava 6 kg.

Queria "agradecer a liberdade", explicou à imprensa.

Ao saber da história desse homem, não consegui deixar de pensar em um verso do poeta americano Langston Hughes (1902-1967) sobre a situação dos negros nos Estados Unidos:

(Nunca me deram igualdade,
Nesta ' terra dos livres ', nunca vi liberdade.)

Lamento ter de informar ao João Paulino que a liberdade que ele agradece ainda não existe de fato nem no Brasil, nem no mundo.

Oficialmente, a escravidão acabou, não se discute. O último país a aboli-la foi a Mauritânia, em 2007. No entanto, a escravidão e suas consequências ainda estão entre nós.

A Organização Internacional do Trabalho estima haver de 21 a 29 milhões de escravos no mundo de hoje. Em 2013, dez países respondiam por 76% desse total. Índia, China, Nigéria e Rússia entre eles. No Brasil, todos os anos, as autoridades libertam cerca de 2 mil pessoas nessa situação. Calcula-se que o mercado de pessoas escravizadas movimente 35 bilhões de dólares anualmente

Indivíduos ou grupos em vulnerabilidade social são as principais vítimas. Acaba sobrando quase sempre para as minorias étnicas, migrantes, mulheres e crianças. A escravidão contemporânea assume formas tão diversas como servidão por dívida, casamento forçado, trabalho infantil e tráfico sexual.

Em todas suas manifestações, as formas modernas de escravização desumanizam as pessoas e atentam contra sua dignidade. Suas consequências podem levar gerações para serem superadas.

Para confirmar esse fato, basta examinar a situação social de países em que a escravidão de africanos e descendentes foi maciça e institucionalizada, como o Brasil.

Durante anos, achamos que bastava abolir a escravatura para que a condição de escravizados desaparecesse. Da mesma maneira, decidimos nos considerar uma democracia racial porque, afinal, se não há conflito aberto entre brancos e negros, não há racismo.

Com essa mentalidade, nos transformamos no país abençoado por Deus e bonito por natureza -onde as injustiças sociais mais atrozes têm lugar.

Ainda há quem, como o senhor João Paulino Barbosa, viva nesse país imaginário, no qual a escravidão acabou há 127 anos.

No entanto, a inferiorização dos negros dos tempos da escravatura continua evidente em qualquer estatística atual que relacione raça e renda ou nível educacional, por exemplo.

Nosso visionário Joaquim Nabuco diria que não basta acabar com a escravidão, mas, sim, com a obra dela. Era dessas estatísticas que ele estava falando.

Por mais otimista que sejamos, vou discordar do João Paulino: ainda não chegou a hora de celebrar.


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