Folha de S. Paulo


Baile à fantasia

Até recentemente, se a diplomacia fizesse um baile à fantasia, os Estados Unidos se vestiriam de Lobo Mau e a América Latina, de Chapeuzinho Vermelho. Podia ser meio anacrônico, mas era assim que definiam sua interação: os americanos comiam, os latino-americanos eram comidos.

Por décadas, as relações dos EUA com a América Latina ficaram reféns desse estereótipo. Tornando o cenário mais crível, estava Cuba, estigmatizada, fantasiada de ameaça comunista, excluída do salão.

O veto era de Washington, e a justificativa, a violação de direitos humanos —como se os EUA não dançassem com nenhum país violador.

Cuba era vendida por Washington como ameaça comunista; os EUA eram vistos como eterna ameaça imperialista. Mais Guerra Fria impossível.

Por conveniências políticas de ambos os lados, as relações com o conjunto do continente permaneceram nessa posição, incômoda mas suportável. Era essa a história.

Mas líderes são pagos para mudar a história, e, no contexto das relações diplomáticas continentais, Barack Obama e Raúl Castro justificaram o seu salário e enriqueceram suas biografias.

Depois da aproximação favorecida pelo Vaticano —e o papa latino-americano—, retomou-se o diálogo entre Havana e Washington. Cuba participou da Cúpula das Américas pela primeira vez e foi retirada por Obama da lista de "países patrocinadores de terrorismo".

A volta de Cuba ao sistema interamericano é um marco poderoso na evolução das relações dos EUA com a América Latina. Quebra, finalmente, o paradigma da Guerra Fria. Permite que o relacionamento avance a um estágio mais realista.

Não que a aproximação dos dois países torne tudo perfeito. Nos EUA, ainda persistirá o embargo, que terá de ser suspenso pelo Congresso. Mas isso é questão de tempo. Haverá pressões econômicas para seu levantamento. Ainda que políticos republicanos usem retórica anticastrista para galvanizar eleitores, os cubano-americanos mais jovens apoiam majoritariamente a reaproximação com Cuba.

Na América Latina, por outro lado, a partir de agora, os termos do diálogo interamericano se redefinem. Todos participam. Ninguém está excluído por discordar de Washington. Esvazia-se o discurso de vitimização, ressentimento e complexo de inferioridade, amplamente explorado por políticos de cunho populista.

Obama não é bonzinho. Tem entendimento de que seu discurso de que "somos todos americanos" trará benefícios aos EUA, potencializando o tratamento de temas importantes de sua agenda como comércio, mudanças climáticas e drogas. A América Latina deve ter esse mesmo entendimento, promover suas agendas próprias e aproveitar de forma mais inteligente a proximidade física e humana que a une à maior potência do planeta.

É como se, no contexto, das relações continentais, se tirasse o elefante (cubano) da sala. Agora, os sofás estão todos livres para as pessoas sentarem e conversarem. O espaço é grande. Pode-se até fazer um baile. (Mas, nesse caso, os convidados terão de mudar de fantasia.)


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