Folha de S. Paulo


Mais médicos e mais respeito

Passei estas duas últimas semanas na Europa participando de eventos literários. Estranhamente, quase não vi turistas brasileiros. Devem ser o frio, a chuva e o euro, que não para de subir.

Meu único contato com o Brasil, neste período, se dá por meio de jornais e da internet. Essa distância é boa para colocar as coisas em perspectiva. De longe, dá para ver qualquer quadro melhor. A visão é mais completa.

De todas as notícias que tive, uma me marcou especialmente.

Diz respeito a uma reunião sobre o Programa Mais Médicos que se realizou no Ministério da Saúde, em junho de 2013.

Para quem não sabe, na Esplanada, em Brasília, os ministérios da Saúde e das Relações Exteriores são vizinhos. Até dividem um ponto de táxi. Por isso, vou reputar à falta de distanciamento a atitude pouco profissional demonstrada por funcionários do governo na tal da reunião, que foi gravada e a cuja gravação a imprensa teve acesso.

O que se ouve não é nada legal ou positivo.

Trata-se de uma aula de cinismo, de como não devem proceder os integrantes de um governo.

Na reunião, funcionários do Planalto e do Ministério da Saúde combinam com uma consultora da OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde) maneiras de excluir o Itamaraty e o Congresso das discussões sobre a participação de médicos cubanos no Programa, para poderem executá-lo "mais à vontade", digamos.

Seria melhor fazer o programa por meio de um acordo bilateral entre Cuba e Brasil, mas isso requereria o exame do Congresso.

Para evitá-lo, a OPAS funcionou como uma espécie de laranja, intermediando a operação.

Além do Congresso, os funcionários também queriam excluir o Itamaraty, que tem a competência constitucional para conduzir as relações do Brasil com outros governos. A melhor prática democrática recomenda que tanto o Congresso quanto os órgãos competentes do governo fossem ouvidos.

Também exigiria que os funcionários públicos não alijassem interlocutores necessários.

Existem razões republicanas para isso que têm a ver com o equilíbrio entre os três poderes.

Se eu fosse explicá-las, chegaria a Montesquieu. Para simplificar, basta dizer que a Constituição determina que seja assim. E quando a Constituição Federal determina, não tem conversa, tem de fazer.

Não me oponho ao Programa. Não gosto das limitações que o governo cubano impõe aos médicos que vêm ao Brasil, mas esse é um problema entre eles e seu governo.

O que sei é que, se eu estivesse no interior do Ceará com um filho doente, preferiria que ele fosse atendido por um médico cubano que por nenhum médico.

Excluir instituições da República da discussão de um tema sobre o qual têm competência constitucional, além de ilegal, é eticamente desprezível.

A atitude que tiveram os funcionários do Ministério da Saúde, do Planalto e da OPAS (todos ainda no governo, pelo que pude averiguar) fala mal dos envolvidos. Não, não foi nem correta, nem republicana, nem democrática. Não pode voltar a acontecer.


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