Folha de S. Paulo


Sobre burcas e collants vermelhos

Quando tinha cinco anos, Soheila foi dada em casamento como quitação de uma dívida familiar. Não teve escolha. É seu pai quem diz: "Se ela não me obedecer, terei de matá-la como quem mata um passarinho –sem remorso".

A história de Soheila –que se rebelou contra esse destino– foi contada por Zohreh Soleimani, fotojornalista iraniana, no excelente vídeo "Matar um pardal".

O fato de que uma garota possa ser vendida ou trocada é tradição na província afegã do Nuristão, onde mora a família de Soheila. Mas ser tradicional à custa dos direitos dos mais fracos é fácil. Tradição nos olhos dos outros é refresco.

No mês passado, estive em Londres e Frankfurt. Dei-me conta de que é praticamente impossível fazer um giro de 360 graus em qualquer praça central dessas cidades sem avistar mulheres cobertas por véus.

Fiquei satisfeito com o clima de respeito e boa convivência. Mas não posso negar o incômodo que senti ao constatar visualmente a supressão da individualidade feminina. São mulheres escondidas da sociedade, que não pode identificá-las nem, portanto, respeitá-las. São mulheres sem rosto. Não pude deixar de pensar em Soheila.

Sei que o islamismo que casa crianças aos cinco anos é fundamentalista, arcaico e tribal. Mas sei também que, por causa de tradições culturais e religiosas, 125 milhões de mulheres, islâmicas em sua maioria, vivem hoje com o trauma da mutilação genital.

A subvalorização das mulheres ganha expressão mais clara no mundo muçulmano, mas não é exclusiva de lá. Em outros países, assume contornos econômicos, como no Japão, onde a mão de obra feminina é subaproveitada, ou demográficos, como na China e na Índia, onde o número de homens e mulheres é desequilibrado em razão do aborto seletivo de meninas.

Neste ano, o Brasil caiu nove posições no índice de igualdade de gênero das Nações Unidas. Vem-me à mente a gostosona de collant vermelho que vi rebolando e tirando fotografias com estranhos ao lado de um carro de luxo no Salão do Automóvel de São Paulo.

Penso em como aquela mulher é subaproveitada. O que lhe pagaria mais e lhe daria vida melhor: os peitos e a bunda ou o cérebro e a imaginação? Suponho que o salário de quem projetou o carro seja maior do que o de quem rebola sobre saltos altos para vendê-lo. É uma lei de mercado.

Quer andar de burca? Perfeito. Todos têm o direito de abraçar as tradições culturais e religiosas que quiserem. Mas a moça de burca –ou sua filha– tem de ter a possibilidade, se quiser, de ser a moça de collant vermelho, que, por sua vez, tem de ter a possibilidade de ser a projetista do carro.

Se não tiver alternativa, não é cultura: é só opressão.

(Entre Soheilas e Salões do Automóvel, foi bom observar o veto brasileiro à entrada no país de Julien Blanc –o que ensina a "pegar mulher à força"– e ver a presidente e a encarregada de negócios da Embaixada do Brasil em Doha, no Qatar, de cabeça descoberta, tratando os xeques do Golfo de igual para igual.)


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