Folha de S. Paulo


A guerra e os manobristas

"Se o grande trauma do Brasil foi a derrota para o Uruguai em 1950, vocês são uns felizardos", dizia um francês a um grupo de amigos brasileiros.

Isso foi antes do 7 x 1. A lógica do comentário, no entanto, se mantém.

Os traumas da França seriam revoluções, guerras e ocupações estrangeiras. Tudo muito pior e mais trágico. Temos nossas próprias mazelas, mas é bom que os brasileiros tenham sido poupados desses infortúnios internacionais.

Com outros países, nossa disposição é, em geral, pacífica e conciliadora.

Brigar com vizinho –de condomínio ou de continente– é coisa feia. Sinto-me bem quando, em alguma situação social, comento com estrangeiros que o último conflito com vizinhos em que nos envolvemos diretamente foi a Guerra do Paraguai, no século 19. Isso sempre rende expressões de admiração.

Sempre achei que a ideia de guerra era estranha aos brasileiros. Adolescente, só tomei consciência de que as guerras aconteciam fora dos livros de história geral quando a Argentina e o Reino Unido se enfrentaram pelas Malvinas, em 1982.

Hoje, enquanto passeava com as cachorras pelas calçadas do meu bairro, escutei um pedaço da conversa de dois manobristas, em frente a um restaurante italiano.

O primeiro comentou: "os Estados Unidos, a Rússia e aquele país –a Coreia do...Norte– são os mais bem preparados para a guerra".

O segundo respondeu com uma pergunta: "e se tiver guerra, de que lado o Brasil vai ficar?"

Como as cachorras quiseram continuar o passeio, tive de interromper minha bisbilhotice. Não fiquei para ouvir a resposta.

Mas segui pensando sobre as razões que levariam dois manobristas de São Paulo a especularem sobre a possibilidade de seu país, o pacífico Brasil, ver-se envolvido em um conflito armado.

Comento o episódio com uma amiga, que me pergunta: "Mas você não sente a incerteza no ar?" "É, eu sinto", respondo. E ela: "os manobristas também".

É fácil conectar os pontos. Para todos os lados, líderes com cara de mau, fazendo coisas inacreditáveis. A Crimeia é anexada pela Rússia. Insurgentes declaram um extenso califado fundamentalista entre o Iraque e a Síria. Garotas são roubadas na Nigéria. Países se desfazem. Um avião comercial é abatido sabe-se lá por quem. Corpos de passageiros empilham-se em vagões. A faixa de Gaza é invadida por Israel. Corpos de crianças misturam-se aos escombros. A ONU informa que, pela primeira vez desde a Segunda Guerra, o número de refugiados no mundo ultrapassou 50 milhões.

Continuo o passeio canino matinal com um pouco de medo. As mesmas dúvidas dos manobristas me assaltam.

Na academia diplomática, nos ensinam que a melhor maneira de prevenir briga com vizinhos é o diálogo e a negociação, e eu penso em como seria melhor se os líderes com cara de mau parassem de fazer coisas inacreditáveis e passassem a conversar mais, para se entender melhor.


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