Folha de S. Paulo


Uma cerveja, por favor!

A primavera no Hemisfério Norte começou na quinta-feira. A sensação, porém, é que o inverno continua. Algumas ameixeiras florescem aqui em Tóquio, mas ainda faz frio.

Parece que a coisa é global. Um amigo que está nos Estados Unidos me mostra neve pelo Skype. O futuro nunca chega. Cadê a primavera?

O noticiário reforça a sensação de paralisia. Só se fala na anexação da Crimeia e no desaparecimento do avião a caminho da China.

No Brasil, a polícia alveja mães de família, e o governo parece que, uma vez mais, desperdiçou milhões do dinheiro do contribuinte. Corrupção, ignorância e impunidade. Tudo cheira a impotência.

Nesse marasmo triste da semana, a única coisa que não me pareceu atraso foi uma declaração dada pelo representante da cervejaria Guinness à TV norte-americana.

Nela, explicava por que, neste ano, sua empresa não patrocinaria os desfiles comemorativos do Dia de São Patrício nas cidades de Boston e Nova York.

São Patrício é o padroeiro da Irlanda, e, no seu dia, em todo o mundo, descendentes de irlandeses desfilam para celebrar a sua herança cultural.

O espírito da festa é tradicionalmente alegre e inclusivo, mas, em Boston e em Nova York, os organizadores resolveram vetar a participação de grupos homossexuais nos festejos.

Foi o que bastou. O representante da Guinness anunciou que, embora 25% das vendas da temporada se concentrassem na data do evento, a empresa e seus funcionários preferiam não se associar a um desfile que consideravam discriminatório.

Outros fabricantes de cerveja, como Heineken e Sam Adams ""bem como os prefeitos das duas cidades–, se juntaram ao boicote.

O magnata australiano Rupert Murdoch quis tomar as dores dos organizadores e instou os irlandeses a boicotarem a cervejaria Guinness em represália. Seus apelos, feitos pelo Twitter, foram infrutíferos.

Primeiro, porque Murdoch, que tem sangue irlandês, tem muito dinheiro, mas perdeu reserva moral depois dos escândalos de espionagem ilegal em que se envolveu.

Segundo, porque, na própria Irlanda, a Parada de São Patrício permite a participação das organizações LGBT sem problemas.

As empresas falaram em princípios. Disseram esperar que sua atitude estimule os organizadores a rever seus critérios de participação nos desfiles. Mas empresas não têm princípios, e o cálculo que devem ter feito é que seria desastroso associar sua imagem a uma mensagem politicamente incorreta contra os gays.

O episódio ilustra como um setor importante nos EUA, como o de bebidas, já leva em consideração um segmento da sociedade que tradicionalmente ignorava.

Também representa um exemplo de como a mudança cultural em relação aos gays influencia o comportamento do mercado, que passa a reconhecer o poder econômico e o apoio politico da comunidade LGBT, seus familiares e simpatizantes. Nesse infindável inverno cinza, essa notícia me deu esperança.

ALEXANDRE VIDAL PORTO é escritor e diplomata. Este artigo reflete apenas as opiniões do autor


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