Folha de S. Paulo


O avesso do avesso

"Aí vem uma pessoa e diz que a inflação vai ser 3%, que a meta de inflação é 3%. Ah, é? Faz uma meta de inflação de 3%. Sabe o que ela significa? Desemprego. Em que proporção? Lá pelos 8,5%, 9%, 10%, 11%, 12%. Por aí." O português pedestre já tornaria desnecessária a identificação do personagem responsável pelo enunciado acima, mas, tivesse sido expresso pelo próprio Camões, o conteúdo (ou melhor, a falta de) não deixaria dúvida que a autora do descalabro não poderia ser ninguém menos que a presidente da República.

Em que pese o diploma de economista (sem mestrado ou doutorado, bem entendido), a fala revela desconhecimento abissal dos fundamentos da profissão, como se os últimos 46 anos de teoria e prática macroeconômica simplesmente não tivessem existido.

Havia, de fato, ali pelos anos 60 a crença de uma troca estável entre inflação e desemprego expressa, entre outros, por economistas do calibre de Paul Samuelson e Robert Solow, ambos mais tarde agraciados com o Nobel de Economia (por contribuições em outras áreas). No caso, inflação mais baixa implicaria, em qualquer circunstância, desemprego mais alto e vice-versa.

No entanto, trabalhos posteriores, começando por Milton Friedman e Edmund Phelps ainda em 1968, revelaram as bases frágeis dessa construção, antecipando a possibilidade da convivência de elevadas taxas de desemprego e inflação, que se tornou uma triste realidade poucos anos depois, um raro exemplo da teoria econômica à frente dos fatos.

A descoberta fundamental desses economistas foi o papel das expectativas de inflação na formação de preços e salários. Em particular, caso um governo tente persistentemente reduzir o desemprego permitindo inflação mais elevada, tanto trabalhadores como empresas passarão a incluir em suas decisões de salários e preços um adicional que reflita a inflação esperada ao longo do horizonte em que os preços estão contratados.

Concretamente, se trabalhadores têm que conviver com um salário fixo nos próximos 12 meses, o reajuste hoje deve ser tanto mais alto quanto maior for a inflação esperada neste período, de modo a preservar o poder de compra dos salários. Assim, em prazo mais longo, quando expectativas e realidade se aproximam, não é possível trocar mais inflação por menos desemprego.

Obviamente, não se sabe com certeza qual será a inflação futura, mas, se há um compromisso do BC em termos de manter a inflação flutuando próxima a determinada meta, o natural é que as expectativas acabem por convergir para este valor, processo que chamamos de "ancoragem", crucial para o sucesso deste tipo de regime.

Não se trata de milagre, mas depende essencialmente do comprometimento do BC com a meta, que, diga-se, não se mede com palavras. Independentemente das juras de fidelidade que se faça à meta, o que ancora as expectativas é a ação da autoridade monetária.

Ao elevar a taxa de juros quando a inflação se desvia para cima da meta (e baixá-la em caso contrário), o Banco Central consegue estabilizar expectativas, como mostrado pela experiência internacional e mesmo a brasileira de pouco anos atrás, sob, é claro, administração bem diferente da atual.

Assim, caso a política monetária seja bem administrada, as expectativas tendem a convergir para a meta e não há necessidade de grandes flutuações na taxa de desemprego para manter a inflação ao redor daquele valor. Pelo contrário, neste cenário o desemprego também tende a se manter ao redor do nível consistente com a meta, independente de esta ser 3%, 5% ou 8%.

Ao contrário, portanto, da crença presidencial, a redução da meta de inflação não requer aumento de desemprego (a propósito: de onde veio o número de 12% de desemprego para reduzir a inflação a 3%? Puro chute!). Requer, porém um BC autônomo e comprometido com seu objetivo, o oposto do observado no Brasil dos últimos anos, em particular sob o comando da presidente.


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