Folha de S. Paulo


Por atrocidades novas

Juro que tento achar temas diferentes sobre os quais escrever a cada semana, mas o esforço do governo, em particular do Ministério de Fazenda, na geração de atrocidades me obriga a voltar a assuntos que já deveriam estar devidamente relegados ao longínquo cemitério das ideias cretinas. Fossem ao menos atrocidades novas...

Refiro-me, é claro, à proposta de "técnicos do governo", caracteristicamente não identificados, de retirar do cálculo da inflação os preços dos alimentos "in natura" em face de "frequentes choques", identificados como o motivo por trás do desvio da inflação com relação à meta. A sugestão, como de hábito, está tão repleta de erros que parece ser feita de encomenda para ilustrar o problema, na (vã) esperança de que parem de vez com essa tolice.

Inflação, bem sabemos, é o aumento persistente do nível geral de preços. A definição é precisa, mas sua contrapartida empírica, nem tanto. Do ponto de vista teórico, quando nos referimos ao "nível geral de preços", temos em mente um mundo platônico em que há apenas um produto (conhecido como "PIB"), cujo preço pode ser facilmente medido e cuja evolução nos daria a taxa de inflação a cada período.

No mundo real, pleno de som e fúria, há múltiplos produtos, o que torna a análise bem mais complexa. Para simplificá-la, determinamos uma cesta de bens e serviços consumidos por uma família média (arroz, escola, dentista, aluguel, gasolina etc.), conforme estabelecido pela pesquisa periódica dos orçamentos familiares. A inflação é então definida como a média ponderada da variação de preços de cada produto na cesta, o que deve ficar claro com um exemplo simples.

Imagine que a cesta consista de apenas três produtos: alimentos, com peso 25%, serviços públicos, com peso 35%, e outros produtos, com peso 40%. Suponha também que o preço de alimentos aumente 2,5% em dado mês, enquanto as tarifas de serviços públicos permanecem constantes e demais produtos registram aumento de 0,9%. Nesse caso, a medida de inflação seria 1,0% (0,25*2,5% + 0,35*0% + 0,40*0,9%).

Na prática, o indicador oficial, o IPCA, engloba 373 produtos, mas o princípio é o mesmo. A cada mês, portanto, há produtos que aumentam mais do que a média ("pressionando" a inflação) e, óbvio, os que variam menos do que a média.

Destacar, assim, apenas os produtos cujos preços mais cresceram sem atentar para os que menos cresceram é, na melhor das hipóteses, uma visão desequilibrada e, na pior, desonesta, da manifestação do fenômeno inflacionário.

No caso em questão, os preços de alimentos consumidos no domicílio aumentaram bastante: 5,6% nos 12 meses até março. Por outro lado, os preços administrados pelo governo subiram bem menos: apenas 3,4%, refletindo o corte das tarifas de energia e o congelamento das passagens de ônibus, bem como a defasagem dos preços de combustíveis.

Descontados, porém, os efeitos de alimentos e tarifas no IPCA (6,1% no mesmo período), descobre-se que a inflação dos demais produtos atingiu nada menos do que 7,4%! Mesmo se descontássemos apenas os alimentos consumidos no domicílio, a inflação de tudo que não é alimento teria atingido 6,3%, também mais alta que a oficial.

Não há, pois, como afirmar que a inflação brasileira "resulta" dos preços de alimentos. Ela reflete pressões generalizadas que não se concentram num punhado de produtos, mas se espalham por uma gama extensa de bens e serviços muito além dos alimentos "in natura".

Assim, ignorar os preços de alimentos em nome de uma medida "mais realista" da inflação, além de deixar de lado parcela relevante dos bens consumidos pela população, em particular as camadas de renda menor, teria como resultado mostrar uma taxa de inflação ainda mais elevada (e, diga-se de passagem, provavelmente mais verdadeira).

Parece, portanto, que os formuladores da ideia nem sequer se deram ao trabalho de fazer contas. Alguém ainda se surpreende com isso?


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