Folha de S. Paulo


A 'momofuquização' da cozinha

Em outubro passado, fui à Casa do Porco Bar, que acabara de abrir as portas, com o reputado chef Carlo Mirarchi. Ele comanda o cultuado Blanca, no Brooklyn, em Nova York, que tem duas estrelas no guia "Michelin" e espera de meses por um lugar. Geralmente muito blasé, acostumado ao que há de mais cool no mundo da gastronomia (é dono também da Roberta's, a mais badalada pizzaria das Américas), ficou admirado com a vibe daquele lugar no Centro de São Paulo. Cachaça e cerveja fluíam alegremente, bom som era pano de fundo para risadas e vozes altas. Clima de festa. A comida, entretanto, era séria, ele logo viu. Evidentemente preparada por equipe com bagagem e pensada por alguém que entende do assunto.

Mirarchi rasgou elogios ao chef Jefferson Rueda por ter bolado um conceito tão bacana. E disse: "Esse lugar me lembra muito o primeiro Momofuku do David Chang (em Nova York), a energia é a mesma, tenho certeza que vai ser um estouro". Ele acertou, hoje o restaurante superinformal, especializado em pratos com porco, faz um sucesso que só se compara ao do Mocotó, na Vila Medeiros. A espera muitas vezes ultrapassa três horas, e vários dos clientes que conseguem mesa, entusiasmados, logo inundam de fotos o Instagram.

A comparação faz todo sentido para quem viu o começo da fulminante carreira de David Chang, americano descendente de coreanos. Hoje, ele está no limiar entre chef e megaempresário. Há anos não dá expediente em uma cozinha –dava broncas tão violentas e estressava-se tanto que adoeceu e aposentou-se dos fogões por ordem médica. Mas quando começou era totalmente diferente.

Em 2004, abriu em Nova York, com dinheiro de seu pai, um pequeno restaurante de macarrão japonês, o Momofuku Noodle Bar. Às custas de muito suor e estresse, não só sobreviveu como conseguiu abrir mais restaurantes no mesmo bairro (Momofuku Ssam Bar e Momofuku Ko). Cozinheiro oriundo do mundo da alta gastronomia, determinado, trabalhava furiosamente para servir comida simples e barata, mas feita com o mesmo cuidado, com técnica e ingredientes que ele vira nos lugares chiques onde trabalhou.

O estilo high-low de servir que Chang criou meio sem querer era algo novo. O pique maluco dele, que eletrizava sua equipe, a gostosura da comida feita com extremo capricho e os encontros embriagados e animados de clientes que tinham vinho e comida como paixões em comum, juntos, eram mágica pura. Mesmo que o Noodle bar vendesse macarrão com caldo por menos US$ 20 e o Ko cobrasse três vezes mais por menus-degustação um tanto ambiciosos, tinham a mesma vibe rock'n'roll, festiva, energizada e explicitamente anti-mainstream.

Chang achou jeito de reproduzir aquele estilo em filais no Canadá, na Austrália e em Washington D.C., homogenizando só um pouco no processo.

Construiu uma rede sem jeito de rede, cujo sucesso baseia-se no casamento do lema "façamos o prato perfeito com a técnica perfeita e o ingrediente perfeito" com espaços desencanados e despidos de luxo. Mais recentemente, pegou um desvio e anda apostando em fast-food de qualidade (seu novo Fuku, especializado em sanduíche de frango frito, tem duas lojas e expandirá a galope). E lançará em breve Ando, um restaurante sem espaço físico, onde vão cozinhar só para quem pedir entrega à domicílio, via app. Tudo isso, por enquanto, em Nova York.

A sua fórmula vencedora de restaurante high-low lhe trouxe fama e fortuna o bastante para bancar essas essas novas apostas.

Rueda talvez não tenha pensado um segundo sequer nos Momofukus ao conceber a Casa do Porco (embora sirva uma versão do pãozinho no vapor com porco desfiado que lembra o prato-assinatura de Chang). Mesmo assim, a Casa do Porco inclui-se entre centenas de sucessores do Noodle Bar e do Ssäm Bar que devem algo ao pioneirismo de Chang. Com seus primeiros restaurantes, ele provou ao mundo que dava para abandonar o competitivo mundo da alta gastronomia para lançar negócios categorizados como "baixa gastronomia" sem perder moral perante os colegas e o público. Antes dele, chefs estrelados como o francês Joel Robuchon haviam tentado passar do formato formal para o casual, mas foram bem menos ousados. Nenhum concorrente pode gabar-se, como Chang, de ter criado uma nova e muito copiada categoria de restaurante: o gastronômico ultradespojado.

Conscientemente ou não, chefs do mundo inteiro inspiram-se no exemplo dele, que mostrou um caminho alternativo –e inimaginável até ele dar tão certo– para alcançar a riqueza e louros profissionais.

Sete anos atrás, encontrei-me em uma cozinha nos confins da Finlândia ladeada por David Chang e Albert Adrià (o talentosíssimo irmão do superstar Ferran Adrià, ambos do extinto restaurante El Bulli, na Catalunha). Chang, meio abobado com a presença de um de seus ídolos, declarou-se: "Você é um gênio, é o melhor". O espanhol retrucou: "Gênio é você, que sabe ganhar dinheiro sem ficar preso na cozinha. Eu adoraria ir a Nova York passar um tempo nos Momofukus para ver como funcionam". Sem um pingo de sarcasmo, disse: "Sonho em ter um sucesso como o seu, em abrir restaurantes simples, mas muito bons e cheios de gente".

Dito e feito. Desde aquela conversa, Albert construiu em Barcelona, restaurante a restaurante, um império de casual dining composto pelo Tickets, de tapas ultrainventivas, o minibar-restaurante Bodega 1900, o nipo-peruano Pakta, o Mexicano Hoja Santa e a taqueria Niño Viejo. No último verão europeu abriu um sexto negócio, sazonal, em Ibiza, chamado Heart. Na maioria, o irmão mais famoso é sócio, mas pouco interfere.

Cada qual a seu modo, inúmeros chefs talentosos egressos de restaurantes de alta cozinha à moda clássica vêm abandonando o velho sistema e abrindo negócios próprios bem mais despojados do que aqueles onde trabalharam. Fred Morin e Dave McMillan, donos do simplíssimo porém aconchegante Joe Beef, em Montreal (um dos melhores restaurantes do Canadá), também saíram de um restaurante que pretendia ser sofisticado.

Ao lançarem-se em carreira solo, descartaram toda formalidade e pretensão.

Será que os restaurantes Fasano do mundo irão desaparecer aos poucos, conforme mais e mais chefs forem deixando os restaurantes "tradicionais" para abraçar a fórmula Momofuku? Aposto que sim. Em vinte anos, os poucos templos pluriestrelados, como os dos chefs Alain Ducasse e Michel Troisgros (França) e Thomas Keller (Estados Unidos), que restarão serão relíquias do passado.

O lucro está nos restaurantes que conseguem aliar despojamento e cozinha de primeira; ambiente descontraído e serviço eficaz; salão sem luxo mas com taças de vinho finas e grandes. Para cada chef utopista que investe em um restaurante fino almejando estrelas "Michelin" há trinta que preferem apostar na fórmula high-low (alta cozinha, baixa sofisticação). A "momofuquização" dos restaurantes de chefs do primeiro time é uma maré crescente que não vai baixar.


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