Folha de S. Paulo


Dilma, Temer e a carne podre

Daniel Marenco - 24.set.2014/Folhapress
A ex-presidente Dilma Roussef e o atual presidente, Michel Temer, durante a campanha presidencial de 2014
A ex-presidente Dilma Roussef e o atual presidente, Michel Temer, durante a campanha de 2014

Uma operação da Polícia Federal revela um esquema de corrupção envolvendo frigoríficos e distribuidores de carne com resultados de embrulhar o estômago: de repente, descobrimos que além de assassinar índios e contribuir com o aquecimento global, nossa indústria da carne também está nos envenenando com produtos vencidos, maquiados, ou cheios de substâncias cancerígenas. Não que carne não seja, por si só, uma substância cancerígena. Mas enfim.

Imediatamente depois da divulgação dos resultados da operação, gente de todos os lados do espectro político começa a atacá-la. O argumento: ao revelar o esquema de venda de carne podre em grande escala, a PF estaria colocando em risco uma indústria multimilionária, que emprega milhares de brasileiros. Ou seja: seria melhor continuar comendo carne podre do que ver o sistema ruir.

Com o julgamento da chapa Dilma-Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral nesta semana, um fenômeno semelhante está se desenhando: não há dúvidas de que as contas da chapa estão podres, mas ninguém quer que se diga isso, ou o sistema inteiro pode ruir. E o sistema político, exatamente desse jeitinho cheio de substâncias cancerígenas, interessa a muita gente.

A ação que será julgada a partir de terça-feira (4) foi movida contra a chapa Dilma-Temer pelo PSDB e inclui alegações de abuso de poder econômico, abuso de poder político e caixa 2. Mas hoje o PSDB faz parte do governo Temer, com quatro ministérios, e já não parece mais querer que a chapa seja cassada –a não ser que, por uma manobra sem precedentes, ela seja dividida com Dilma sendo condenada e Temer não. Em suas alegações finais apresentadas na última semana, o partido isenta o presidente de toda responsabilidade sobre os supostos crimes denunciados na ação.

E não é só o PSDB que parece ter mudado de ideia quando o assunto é a cassação de Temer. A defesa de Dilma Rousseff também está comprometida em manter o presidente- que-até-ontem-era-golpista no poder –nem que seja para que as contas de Dilma sejam consideradas limpas por tabela. Semana passada, os advogados da ex-presidenta pediram mais prazo para analisar os documentos que subsidiam a ação, o que atrasaria o processo. E, neste caso, o atraso importa, porque no dia 17 de abril o advogado Admar Gonzaga assume o posto de Henrique Neves no TSE. Neves é visto pelo Planalto como favorável à tese da cassação da chapa. Já Gonzaga foi indicado pelo próprio Temer, o que é no mínimo estranho: um réu, indicando seu juiz.

Assim, se depender da articulação dos dois partidos que protagonizam nossa suposta polarização política, Temer poderá continuar governando. Com isso estará livre para empreender as reformas que está tentando emplacar na mais absoluta ausência de debate, popularidade, e legitimidade democrática.

Não é de surpreender que os movimentos de juventude estejam cedendo cada vez mais à tentação perigosa de negar tudo –partidos, representantes, instituições democráticas, tribunais. O vazio pode e deve ser preocupante. Mas a realidade que temos se tornou insuportavelmente hipócrita, desprovida de sentido, e descolada dos interesses, necessidades e aspirações da população.

Nesse Brasil cheio de carne podre, parece que todas as partes preferem que o câncer continue sendo nosso, e salve-se quem puder.


Endereço da página: