Folha de S. Paulo


Nunca mais alguém se relacionará com chimpanzés como eu, diz primatóloga

Hector Retamal/AFP
A primatóloga Jane Goodall segura um primata filhote da espécie _Cebus capucinus_
A primatóloga Jane Goodall segura um primata filhote da espécie Cebus capucinus

Se você algum dia conhecer Jane Goodall pessoalmente e seus olhos se encherem de lágrimas de alegria e assombro, você não será o único. "Eu faço todo o mundo chorar", comentou Goodall, primatóloga e conservacionista. "É o efeito Jane."

Lágrimas já foram derramadas, de fato, diante de "Jane", novo documentário sobre o início de sua vida e realizações profissionais [ainda sem previsão de lançamento no Brasil]. O filme é baseado em mais de cem horas de imagens filmadas para a "National Geographic" na década de 1960 e que passaram décadas esquecidas nos arquivos da revista.

O cinegrafista foi Hugo van Lawick, que chegou para documentar a vida de Goodall entre os chimpanzés de Gombe, na Tanzânia, e saiu de lá como marido dela.

Jane Goodall, 83, tem um senso de humor irônico ("você cresce, passa de bebê a idosa e vai ficando mais velha, ou não, dependendo de quantos liftings fizer", ela comentou) e transborda calor humano. "Posso te dar um abraço de chimpanzé?", ela me perguntou ao final da entrevista em um hotel de Manhattan.

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Hoje você já está acostumada à atenção, mas, no início, como se sentia sendo observada, do mesmo modo que você observava os chimpanzés?

Jane Goodall - Eu sabia que a "Geographic" tinha mandado Hugo para captar as imagens que pudesse dos chimpanzés, mas também para me documentar. Não estava muito contente com isso, mas sabia que precisávamos dessas imagens –e eu precisava do financiamento da "Geographic". Assim, se Hugo quisesse me filmar lavando o cabelo, que assim fosse. No final, essa foi uma das cenas favoritas do filme.

A composição das imagens é belíssima. Houve momentos em que Hugo lhe pediu "vá um pouco mais à direita"?

Sim, foi um pesadelo. Eu tinha que comer a mesma coisa cinco vezes, tinha que refazer tudo. Por sorte, um dos primeiros empregos que tive foi em um estúdio em Londres, fazendo coisas para comerciais, e aprendi muitas coisas úteis. Por isso, quando os cineastas dizem "estava perfeito, podemos fazer de novo?", eu sei o porquê, sendo que a maioria dos cientistas se irrita tremendamente.

Como foi assistir ao filme, sobretudo o início de seu romance com Hugo e depois a dissolução do casamento de vocês?

Eu não havia imaginado que pudesse haver algo de novo naquelas imagens. Tantos documentários já foram feitos sobre mim.

Quando vi o filme, ele me levou de volta à pessoa que eu era naquela época, de maneira diferente. Adorei assistir a aproximação crescente entre Hugo e eu em Gombe, a felicidade de nosso casamento e do nascimento de nosso filho. E foi reconfortante perceber, olhando em retrospectiva, que o fim de nosso casamento foi de certo modo inevitável.

Você sempre sonhou em ir à África para estudar animais, mas inicialmente não tinha estudos formais nem formação científica. Em algum momento você temeu não estar à altura da tarefa?

Nunca. Quando os chimpanzés estavam fugindo, morri de medo que as verbas acabassem. Eu sabia que, se pudesse ficar lá pelo tempo suficiente, daria certo. Sou uma pessoa obstinada; para mim, desafios existem para ser superados.

Era quase impensável que uma mulher jovem fizesse esse trabalho, mas você nunca encarou isso como obstáculo.

Não fui criada assim. As mulheres não eram cientistas [naquela época]. Olhando em retrospectiva, ser mulher na África foi uma vantagem, pois, naquela época, os países africanos eram recém-independentes ou caminhavam em direção à independência, e os homens brancos eram vistos como ameaças. Os africanos não gostavam deles. Mas eu, como mulher -todos queriam me ajudar. Não havia concorrência com homens nesse campo, porque ninguém estava fazendo [o que eu fui fazer].

Você sentiu medo em algum momento?

Sim, às vezes. Quando os chimpanzés começaram a perder o medo, ficaram bastante agressivos, e eles eram dez vezes mais fortes que eu. Eles me tratavam como predadora, como tratariam um leopardo.

Seus pelos estavam arrepiados, eles estavam gritando, tinham subido numa árvore, estavam agitando os galhos e batendo na minha cabeça com os galhos. Felizmente, enquanto isso estava acontecendo eu não senti medo. Pensei: "Vai ficar tudo bem, eu tinha mesmo que estar aqui." Eu cavei buraquinhos no chão, comi folhas, não olhei para eles, e de fato, como eu esperava, eles foram embora. Mais tarde, minhas pernas ficaram bambas.

O método de observação científica é muito diferente hoje; não há contato entre o cientista e o animal. Você sente falta da proximidade que existia antes?

Sinto falta de estar na floresta. Quando olho para esse filme e penso no relacionamento que eu tinha com [os chimpanzés] Flo e David Greybeard, foi algo mágico e que nunca voltará a existir. Ninguém nunca mais fará desse jeito. Volto a Gombe duas vezes por ano e faço questão de passar um dia sozinha na floresta. Mas há turistas e pessoas importantes que vêm, e é tão diferente.

Do que você sente medo hoje?

Não da morte em si. Porque ou não há nada depois dela ou há alguma coisa, e neste caso será superinteressante. Mas acho que sentimos medo de ficar decrépitos.

Quanto ao mundo, acho que precisamos combater a pobreza, o estilo de vida insustentável que a maioria de nós vive e o crescimento da população humana. Essas três coisas levaram à mudança climática e a todo o resto. Precisamos mudar as coisas, se não como ficará o mundo daqui a 50 anos? Sinto medo pelos filhos de meus netos.

O que podemos fazer para ajudar? Conheço pessoas incríveis que estão salvando animais que estão à beira da extinção, restaurando florestas, limpando rios. É saber o que pode ser feito que dá às pessoas a coragem de lutar.

Tradução de CLARA ALLAIN


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