Folha de S. Paulo


Livro de brasileira conta como os humanos ganharam 'supercérebros'

Keiny Andrade - 30.jun.2016/Folhapress
Paraty, RJ, 30.06.2016 - FLIP 2016 ILUSTRADA - Mesa
A cientista Suzana Herculano durante debate na Flip

Quem abrir ao acaso o livro "A Vantagem Humana", nova obra da neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel, corre o risco de achar que está diante de um livro de culinária exótica, cuja especialidade é a técnica de preparo de sopa... de cérebro.

O exotismo é inegável (os "ingredientes" incluem miolos de camundongo, macaco, girafa, elefante), bem como o ar gastronômico da narrativa. Mas a receita que realmente interessa a Suzana e seus colegas é a que permitiu o surgimento do sofisticado prato da cognição humana.

Transformar massa encefálica em papa foi só um meio para tentar decifrar a estrutura básica do cérebro e explicar como nos tornamos primatas capazes de inventar a agricultura, a escrita e os smartphones.

A resposta, segundo a cientista e colunista da Folha, não é que o nosso cérebro seja o maior de todos (baleias, golfinhos e elefantes têm massa cerebral superior à média humana), nem que o nosso órgão seja o mais avantajado em relação ao tamanho do corpo.

A vantagem do Homo sapiens viria do número absoluto de neurônios no córtex, a região mais externa do cérebro, que supera em muito o que se vê em qualquer outro animal.

MISTÉRIO DOS MIOLOS

O trabalho de Suzana e seus colegas revelou que os 16 bilhões de neurônios do córtex cerebral humano (estimados graças à técnica da "sopa") surgiram graças a um padrão já presente desde a origem da linhagem dos primatas.

O organismo dos nossos ancestrais e primos evolutivos "descobriu", há dezenas de milhões de anos, o truque de empacotar mais células cerebrais no mesmo volume, coisa que o cérebro dos demais mamíferos não consegue fazer. Por isso, diz ela, a nossa versão do órgão não é propriamente excepcional: seu número de neurônios é mais ou menos o esperado para um primata de grande porte.

Na verdade, quem foge a essa regra são os grandes macacos, como chimpanzés, gorilas e orangotangos, cujo cérebro tem apenas cerca de um terço do tamanho do nosso. Alguma barreira evolutiva teria impedido que eles ganhassem mais neurônios no córtex –para Suzana, foi a dificuldade de obter calorias suficientes para alimentar um órgão tão custoso em termos energéticos (nos seres humanos modernos, ele consome um quarto de todas as calorias deglutidas diariamente).

Nossa linhagem teria superado essa limitação a partir de uns 2 milhões de anos atrás, por meio da invenção do ato de cozinhar –a comida processada dessa maneira pode ser digerida de forma muito mais fácil e eficiente.

SEM GLAMOUR

Para a neurocientista, os detalhes do preparo da "sopa de cérebro" e da inusitada passagem de cérebros de mamíferos africanos pela alfândega brasileira, relatados no livro, ajudam os leitores a enxergar os cientistas como pessoas normais.

"É compreensível que reportagens sobre ciência explorem o glamour, a alta tecnologia, as reuniões pomposas, mas estou interessada em mostrar que a gente resolve problemas como em qualquer outro trabalho. Tem dia que você começa indo para uma loja de ferramentas em busca do maior facão que conseguir encontrar", brinca.

Ou acaba aprendendo a manejar uma serra elétrica para obter amostras da medula espinhal de mamíferos africanos em plena savana. "Meu casaco ficou coberto de pó de osso naquele dia", recorda.

É o primeiro livro que Suzana escreve sobre seu próprio trabalho acadêmico (em obras anteriores, ela fazia apanhados de descobertas de sua área), e o texto foi composto originalmente em inglês –não só porque agora ela é professora da Universidade Vanderbilt (EUA), mas porque ela queria alcançar um público global com interesse em ciência.

A tradutora Laura Teixeira Motta acabou vertendo o livro para a língua materna da neurocientista. "Eu não teria a menor condição de fazer essa tradução sozinha, mas pude fazer algumas adaptações para que o texto soasse com a minha voz, com a minha escolha de palavras", conta.

Se o mero número de neurônios é o que possibilita a inteligência humana, isso significa que bastará juntar potência computacional suficiente num único grande "cérebro" eletrônico para que criemos uma forma de inteligência artificial comparável com a nossa? Talvez, diz a pesquisadora, mas "necessário" não é o mesmo que "suficiente".

"A gente esquece que ter 16 bilhões de neurônios no córtex não basta. Cada pessoa que nasce leva toda uma vida, até duas décadas, preparando esse cérebro, moldando-o com experiências e vivências para que ela tenha todas as habilidades cognitivas de um ser humano. Quando crianças me perguntam por que precisam ir à escola, eu respondo: se você não for, você vai ser só um punhado de neurônios, um monte de capacidade sem habilidade."

A Vantagem Humana
Suzana Herculano-Houzel
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Ela lembra ainda que as sociedades humanas só se tornaram tão poderosas graças à especialização e à divisão de trabalho, que permitem que cada pessoa não precise dominar mais do que uma parte ínfima do conhecimento total da espécie.

"Eu, por exemplo, sei escrever, mas será que eu consigo fazer papel sozinha? Vi como se faz na escola, mas jamais ia conseguir derrubar um eucalipto, transformar a madeira em polpa e todo o resto do processo. Voltando para a inteligência artificial, a mensagem é que ter as unidades de processamento em grande número não é mais uma dificuldade, mas o que falta é a auto-organização delas, que é essencial na cultura humana."

A Vantagem Humana: Como Nosso Cérebro se Tornou Superpoderoso

Autora Suzana Herculano-Houzel
Tradutora Laura Teixeira Motta
Editora Companhia das Letras
Quanto R$ 54,90 (352 págs.)


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