Folha de S. Paulo


Os computadores que estão sendo treinados para vencer você em qualquer discussão

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Máquinas ganhando de humanos em jogos de xadrez já deixou de ser uma novidade
Máquinas ganhando de humanos em jogos de xadrez já deixou de ser uma novidade

Os humanos já estão acostumados a perder para os computadores quando o assunto é lembrar acontecimentos, mas ainda têm vantagens na hora de discutir. Pelo menos por enquanto.

Há tempos as máquinas ganham de nós em jogos de estratégia, como o xadrez. E acabamos aceitando com resignação que a Inteligência Artificial é superior na avaliação de grandes quantidades de dados –por exemplo, examinando as notas fiscais de supermercado de milhões de compradores para ver quem poderia ficar tentado por cupons de desconto de sabão em pó.

Mas e se a Inteligência Artificial fosse capaz de lidar com as facetas mais humanas –navegar o campo minado das nuances, da retórica e até mesmo das emoções que nos acometem durante uma discussão?

Um número cada vez maior de pesquisadores se debruça sobre essa possibilidade, o que poderia, em última análise, ajudar os humanos a tomarem decisões melhores.

DETECTANDO UMA DISCUSSÃO

Até muito recentemente, a criação de máquinas capazes de discutir era um objetivo inalcançável.

A finalidade não era, obviamente, ensinar computadores a aguentar a pressão em uma discussão sobre uma vaga em um estacionamento, ou decidir de quem é a vez de levar o lixo para fora.

Em vez disso, as máquinas capazes de discutir podem contribuir ao trazer informações para o debate –ajudando humanos a contestar uma evidência, buscar alternativas e chegar a conclusões.

É uma possibilidade que poderia agilizar a tomada de decisões em todos os assuntos, desde como um negócio deve investir seu dinheiro até o combate ao crime e a melhoria da saúde pública.

Mas ensinar um computador sobre a comunicação humana –e o que é realmente uma discussão– é muito complexo.

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Campeão mundial de xadrez, Garry Kasparov perdeu para o computador Deep Blue em 1997
Campeão mundial de xadrez, Garry Kasparov perdeu para o computador Deep Blue em 1997

Pense em um tribunal como exemplo de um lugar no qual as discussões são essenciais.

Apresentar evidências certamente faz parte do processo, mas regras sociais, requerimentos legais, sensibilidades emocionais e entraves práticos influenciam como advogados, membros do júri e juízes formulam e expressam sua lógica.

Com o passar dos anos, porém, pesquisadores começaram a pensar que pode ser possível delinear algumas características das argumentações humanas.

O esforço agora está voltado para detectar como essas trocas funcionam e transformá-las em algoritmos de Inteligência Artificial –essa área é conhecida como tecnologia de discussão.

Os avanços nessa área ocorreram graças a um aumento rápido na quantidade de dados disponíveis para treinar computadores na arte do debate.

Parte desses dados vem de análises de inteligência, outros de fontes especializadas na internet e outras de programas de debate ao vivo como o Moral Maze, da BBC.

Também foram desenvolvidos novos métodos para ensinar aos computadores como as discussões funcionam.

Pesquisadores da área também usam filosofia, linguística, ciência da computação e até direito e ciência política como base para entender os debates.

Na Universidade de Dundee, na Escócia, usamos recentemente teorias de retórica de 2.000 anos atrás como uma forma de encontrar as estruturas das discussões na vida real.

Os avanços rápidos na área fizeram dezenas de laboratórios de pesquisa ao redor do mundo se dedicarem ao problema, e a explosão nessa área de estudo é diferente de tudo que eu já vi em 20 anos de academia.

'POR QUE O CÉU É AZUL?'

Isso significa que em breve os computadores serão fluentes em oratória e prestes a dominar o mundo?

Não. Deixe-me dar um exemplo mundano.

Até muito recentemente, até mesmo as técnicas mais sofisticadas de Inteligência Artificial poderiam ficar completamente atordoadas com pronomes.

Então, se você falasse ao assistente pessoal do seu smartphone: "Eu gosto de Amy Winehouse. Toque algo dela", o software seria incapaz de entender que "dela" se referia a "Amy Winehouse". Seria um tipo de pesadelo apocalipse dos robôs.

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Computadores poderiam aprender a dominar a arte infantil de perguntar
Computadores poderiam aprender a dominar a arte infantil de perguntar "por quê?"

Se coisas tão simples podem ser tão difíceis para a Inteligência Artificial, qual é a chance de computadores conseguirem discutir?

Há ao menos duas principais maneiras pelas quais os computadores poderiam debater que se aproximam muito da nossa.

A primeira é ao justificar e explicar.

Uma coisa é pesquisar na internet como a violência nos videogames afeta as crianças, outra é ter um sistema que automaticamente salva razões contra e a favor da censura de tal violência –uma área que está sendo explorada pela IBM, com quem trabalhamos em colaboração.

O sistema resultante é como uma assistente que busca os sentidos por trás das visões conflitantes a respeito do tema e permite um aprofundamento nas justificativas para pontos de vista diferentes.

O segundo é desenvolver uma inteligência artificial que possa brincar de jogos de debate –seguindo as regras de interação que podem ser encontradas em todos os lugares, de tribunais a leilões.

Esses jogos foram pilares fundamentais da investigação filosófica de Platão a Wittgenstein, mas eles estão começando a ser usados para ajudar os computadores a contribuir para as discussões entre humanos.

Qualquer um que já tenha convivido com uma criança pequena sentirá uma familiaridade com ao menos um desses jogos.

As regras são muito simples. O adulto diz alguma coisa. A criança pergunta "por quê?". O adulto responde. A criança pergunta "por quê?" de novo. E assim sucessivamente.

Geralmente, essas conversas acabam quando o adulto faz uma tentativa desesperada de mudar de assunto.

Mas nós que estamos no papel do adulto desse jogo sabemos que, na verdade, após algumas perguntas, pode ser muito difícil dar boas respostas: temos que pensar muito.

Pensar muito –embora isso não seja tão importante se você estiver tentando explicar para uma criança de três anos por que o céu é azul– pode ser muito mais importante se a discussão for sobre uma decisão de negócios que afetará centenas de empregos, ou diante da ameaça de algum grupo extremista.

Então, se até o mais simples jogo de diálogo pode ser capaz de afiar o pensamento antes da tomada de decisões importantes, imagine os modelos mais sofisticados?

É nisso que estamos trabalhando.

Se os computadores podem aprender as técnicas para identificar os tipos de discussão que os humanos usam para tomar decisões em grupo, eles podem também acessar a evidência usada e dar sugestões ou até possíveis respostas.

Ajudar uma equipe a evitar um viés inconsciente, evidências fracas e argumentos pouco desenvolvidos pode melhorar a qualidade do debate.

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Inteligência Artificial poderia ajudar nas estratégias antiterrorismo
Inteligência Artificial poderia ajudar nas estratégias antiterrorismo

Por exemplo, estamos fazendo um software que reconhece quando as pessoas usam argumentos com base em depoimentos de testemunhas e pode criticá-los, apontando como testemunhas podem ser parciais ou não confiáveis.

De conselhos corporativos até mediação de casais e da análise de inteligência até o design de interiores, a Inteligência Artificial em breve poderá nos ajudar a tomar decisões melhores.

O termo "Inteligência Artificial" foi usado pela primeira vez no final dos anos 1950 e levou pesquisadores da época a prever com confiança que a Inteligência Artificial estava a 20 anos de distância dali.

Ainda está –e provavelmente muito mais distante.

Enquanto isso, a tecnologia de discussão oferece o potencial para contribuir para as decisões tomadas por humanos.

Esse tipo de inteligência artificial não interferiria nos grupos humanos, mas trabalharia com eles como parceiros para lidar com desafios difíceis.

E poderia até ajudar a explicar a crianças de 3 anos por que o céu é azul.

Chris Reed é o diretor do Centro de Tecnologia de Discussão da Universidade de Dundee, na Escócia. O centro trabalha com pesquisa de tradução de argumentação da filosofia e linguística até a Inteligência Artificial e engenharia de software.


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