Folha de S. Paulo


Cientistas tentam descobrir como os médicos pensam

Romolo Tavani/Fotolia
Técnica usada foi a ressonância magnética funcional
Técnica usada foi a ressonância magnética funcional

Para um médico, pensar e chegar a um diagnóstico é uma atividade mental tão sofisticada quanto aquela realizada no reconhecimento de que um animal de quatro patas, que abana o rabo e fala "au, au" é um cachorro.

De certo modo, essa foi uma das conclusões às quais chegaram cientistas da USP após terem tido a audácia de investigar o que se passa na cabeça de um médico enquanto ele tenta bater o martelo sobre qual doença aflige um paciente.

A técnica usada não foi a leitura de pensamentos (ainda indisponível no mercado), mas a ressonância magnética funcional, que é capaz de detectar quais áreas do cérebro estão mais ativas em um determinado momento.

Será virose?

Com ela, os cientistas chegaram à não tão inesperada conclusão de que não é muito diferente o processo de reconhecimento de objetos daquele de diagnosticar pacientes. No estudo, foram apresentadas palavras-chave ligadas a sintomas e a outros dados dos pacientes, como "febre", "dor", "vermelhidão na pele", "depressão" e "teste positivo para o HIV".

Um resultado importante é que, quando o médico recebe uma informação mais específica (como um exame mostrando presença do HIV), ele tende a dar menos bola para outros sintomas menos chamativos.

"Nossa hipótese era a de que informações diagnósticas inespecíficas evocariam mais atividade em áreas do cérebro ligadas à atenção, para dar conta da maior demanda cognitiva relacionada com a incerteza, quando comparadas com informações altamente diagnósticas", diz o médico Marcio Melo, pesquisador associado à Faculdade de Medicina da USP e principal autor do estudo.

"Os resultados mostram que houve uma redução de atividade nessas áreas quando uma informação altamente diagnóstica era apresentada logo no início da tarefa."

O problema é que, em alguns casos, aspectos importantes e que mereciam atenção, como uma depressão, podem ser deixados de lado. Em outros, pode haver um diagnóstico errado, já que com o baixo nível de atenção do cérebro, outros dados importantes podem ser ignorados, explica o autor.

Um possível desdobramento do estudo, afirma o pesquisador, é a criação de um software que pode auxiliar o médico no diagnóstico ao deixar destacadas as opções que seriam facilmente descartadas pelo algoritmo mental do profissional.

"Seria um recurso importante, porque ninguém consegue ficar se monitorando o tempo todo, principalmente se você tem apenas 15 minutos de consulta, tempo médio de atendimento no Brasil e no exterior", afirma Melo.

PALAVRAS

Ao investigar os momentos em que surgiam as respostas cerebrais nos médicos, o trabalho dos pesquisadores da USP acabou caminhando por uma trilha menos óbvia.

Foi observado que uma pequena fração do cérebro está ativa durante o período de decisão dos médicos. Esse padrão, segundo o estudo, muda completamente com o início da vocalização –e essa atividade engloba áreas envolvidas na consciência e na audição.

"Seria o cérebro se preparando para ouvir a própria resposta", interpreta Melo.

"Outros trabalhos já propuseram que temos que escutar, em voz alta ou falando só em pensamento, a nossa própria fala para termos consciência dos nossos pensamentos verbais. Concluímos que esta atividade cerebral no início da vocalização está relacionada aos participantes tomarem consciência das próprias respostas."

Na prática, diz o médico, os resultados podem ser uma prova da importância do processo de conversar consigo mesmo para o aprendizado.

"Ao expor suas ideias, de repente você descobre coisas das quais não sabia antes. Há coisas que acontecem no cotidiano e que de repente você entende, mas que ganham clareza após você falar a respeito. O mesmo acontece quando você lê o que escreve", afirma.

"Deve haver um mecanismo neurológico subjacente que explique isso, mas nós ainda não conhecemos."

Os achados foram publicados na revista "Scientific Reports", do grupo Nature.

LINGUÍSTICA

Os achados do trabalho de Melo e colaboradores sobre o funcionamento do cérebro de médicos durante o diagnóstico de doenças pode ter impacto não só na ciência médica, mas também na linguística. Essa é a opinião do especialista Luiz Carlos Cagliari, linguista e professor aposentado da Unesp.

Indo por esse caminho, a discussão acaba descambando para tópicos mais sofisticados, como as hipóteses sobre o funcionamento da consciência, da memória e a definição do que é um pensamento.

"É muito interessante que um médico use sua memória para fazer diagnósticos e receitar tratamentos. Aliás, isso é de se esperar. Porém, a memória por si só não forma uma conclusão, apenas contribui com elementos que devem ser elaborados no pensamento médico de cada caso circunstancialmente", diz Cagliari.

"É nesse momento que aparece a consciência de fazer certo, errado ou duvidoso. Essa reflexão não se traduz no que o médico realmente diz, mas fica em sua mente como uma forma de consciência do que foi pensado", afirma.

VELOCIDADE

O conhecimento sobre o funcionamento da cabeça de um médico (e possivelmente também de qualquer um que use linguagem para pensar) foi possível graças a um ajuste metodológico na hora de se adquirir os dados de ressonância magnética funcional.

O macete, segundo o Márcio Melo, da USP, foi obter as informações em um intervalo até dez vezes mais curto, permitindo que a atividade cerebral pudesse ser detectada com a precisão temporal de fração de segundo, em vez de apenas a cada dois ou três segundos, como ocorre convencionalmente.


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