Folha de S. Paulo


Memórias reais e distorcidas deram origem aos Evangelhos

Reprodução/BBC
Leitores casuais dos Evangelhos não costumam prestar atenção nas incongruências
Leitores casuais dos Evangelhos não costumam prestar atenção nas incongruências

Após o nascimento de Jesus, ele e sua família foram visitados por pastores de Belém ou pelos Magos vindos do Oriente? Quando ele ainda era bebê, José e Maria fugiram às pressas para o Egito para salvá-lo do temível rei Herodes ou voltaram sossegadamente para Nazaré?

Leitores casuais dos Evangelhos não costumam prestar atenção nessas incongruências ou as combinam numa única grande narrativa informal (primeiro chegaram os pastores e depois os Magos, por exemplo).

Mas a maioria dos historiadores atuais concorda que tais divergências refletem diferentes retratos de Jesus nas tradições cristãs primitivas.

Memórias Criativas - Alguns exemplos de como a tradição cristã recriou a história de Jesus

Para o americano Bart Denton Ehrman, professor de estudos religiosos da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, as diferenças indicam que as memórias originais a respeito de Jesus passaram por inúmeras transformações quando ainda não passavam de tradição oral, antes de serem registradas nos livros que hoje compõem o Novo Testamento.

As mutações complexas dessas primeiras memórias cristãs são o tema do livro mais recente de Ehrman, "Jesus Before the Gospels" ("Jesus Antes dos Evangelhos").

Além de analisar os textos bíblicos em busca de pistas sobre sua "pré-história", o pesquisador propõe um interessante diálogo com as diferentes ciências que estudam a memória humana, em especial a psicologia e a etnologia (normalmente estuda a cultura de populações tradicionais não urbanizadas).

Em resumo, Ehrman busca responder duas perguntas: dá para confiar na memória humana? E quanto à memória de povos que se valem mais da tradição oral: ela é melhor do que a nossa?

As respostas curtas são, respectivamente, "mais ou menos" e um sonoro "não".

É importante deixar claro por que o historiador decidiu investigar esses temas. Ehrman lembra que o consenso entre os pesquisadores é que os relatos bíblicos sobre a vida de Jesus –Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João– foram escritos entre 40 anos e 60 anos após a morte de Cristo. As cartas do apóstolo Paulo são um pouco mais recentes –duas a três décadas depois da crucificação.

Isso significa que as informações sobre a vida e os ensinamentos de Cristo passaram por um longo período de transmissão oral.

Existe a ideia popular de que grupos que dependem da oralidade para transmitir suas tradições sagradas possuem uma memória mais treinada e fidedigna do que a de quem depende da escrita. Esse mito não corresponde aos fatos, mostra Ehrman.

Estudos em diferentes locais e sociedades mostram que as tradições mudam o tempo todo, em intervalos relativamente curtos, dependendo de quem as está recontando ou até quando a mesma pessoa a relata em dias diferentes.

Também parece ser muito fácil criar memórias "culturais" de um evento impactante. Em 1992, por exemplo, um avião bateu num prédio perto de Amsterdã. Dez meses depois, psicólogos holandeses perguntaram a 200 voluntários se eles haviam visto o vídeo do acidente. Mais da metade disse que sim. Detalhe: esse vídeo nunca existiu.

Outros estudos também mostram que até testemunhas oculares de um evento raramente o recordam com precisão. O mais comum é criarem uma memória com lacunas e elementos distorcidos.

RECRIANDO O MESTRE

Para Ehrman, esses erros naturais da memória humana explicam parte das discrepâncias entre os relatos presentes nos Evangelhos.

Outras diferenças, no entanto, podem ser creditadas à parte criativa do funcionamento da memória.

Isso têm a ver com outra característica central das lembranças humanas: elas também servem para dar sentido ao presente. No caso de Jesus, as diferentes comunidades cristãs usaram as memórias do Mestre para enfrentar dilemas de seu presente, e com isso as moldaram de formas peculiares.

Isso ajuda a entender por que o Evangelho de Mateus mostra um Jesus preocupado com os detalhes da legislação religiosa judaica (o evangelista provavelmente vivia numa comunidade de judeus convertidos ao cristianismo), enquanto o apóstolo Paulo dá detalhes de morte de Cristo, mas praticamente não fala de sua vida (para ele, o mais importante era a salvação trazida pelo sacrifício na cruz).

Não é fácil reconstruir um Jesus "puramente histórico" a partir dessas visões. Mas elas são tão legítimas quanto qualquer interpretação de outro personagem histórico cujo objetivo é torná-lo relevante para o presente.

JESUS BEFORE THE GOSPELS
AUTOR Bart D. Ehrman
EDITORA HarperOne
QUANTO R$ 41,39 (livro eletrônico); 341 págs.


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