Folha de S. Paulo


'Peneira genética' pode ajudar a escolher e melhorar atletas de elite

Diego Padgurschi/Folhapress
O jamaicano Usain Bolt vence prova dos 200 m na Rio-2016
O jamaicano Usain Bolt vence prova dos 200 m na Rio-2016

A Olimpíada do Rio mal acabou, mas o assunto esporte continua na pauta –pelo menos para os cientistas que há décadas buscam entender o que, na biologia, faz um atleta de elite.

Seria possível, por exemplo, a partir de um exame de sangue, fazer uma "peneira genética" e achar os possíveis melhores atletas de antemão?

Um grande consórcio quer responder essa e outras perguntas relacionados à ciência esportiva. O projeto recebeu o nome de "Projeto Atloma" (Athlome Project, em inglês) e visa melhorar o entendimento sobre o tema, reunindo centenas de grupos de cientistas em todo o mundo.

O embaixador desse projeto é o australiano de origem grega Yannis Pitsiladis, professor da Universidade de Brighton, no Reino Unido. Ele estará no Brasil nesta quinta (1º) para apresentar o projeto na Convenção Internacional de Ciência, Educação e Medicina no Esporte (Icsemis, na sigla em inglês), que será realizado em Santos (SP).

MESMA CAMISA, GENES DIFERENTES

A rota já está traçada –é uma questão de dar ordem e senso de conjunto às pesquisas já em andamento há anos, além de tentar ajudar na obtenção de financiamento junto às agências de fomento.

A proposta do Projeto Atloma tende a se valer dos avanços das diversas "-ômicas" que já tomaram conta da biologia: genômica, proteômica (estudo das proteínas), epigenômica (estudo de ligamento/desligamento dos genes), metabolômica (referente ao metabolismo), nutrigenômica (quais alimentos são mais adequados para um organismo) entre tantas outras.

É do interesse do consórcio entender a predisposição de atletas a lesões, identificar genes relacionados ao aumento do desempenho e até criar modelos animais geneticamente modificados para testar essas ideias.

MAPEANDO ATLETAS

O grande foco, no entanto, é mapear atletas de elite. São pelo menos 12 grandes projetos já em andamento que, baseados em amostras de DNA (saliva ou sangue) doadas por atletas, querem mapear genes e polimorfismos (pequenas alterações genéticas) associados ao desempenho.

Uma dessas alterações que vem sendo estudada em diversos esportes (como salto em distância, corrida e levantamento de peso) é a do gene da alfa-actinina 3 (ACTN3). Há duas versões dessa proteína: uma associada a um aumento da força de contração muscular, outra que ajuda a célula muscular a se manter em operação por mais tempo (resistência).

Como cada pessoa tem duas cópias de cada gene (uma materna e uma paterna) são três possibilidades: duas cópias dessa versão do gene que aumenta a força (RR), uma cópia (RX) ou nenhuma cópia (XX).

Raciocínio semelhante pode ser aplicado para mais de 200 outros genes, o que mostra a dificuldade de "definir" um atleta geneticamente.

BASQUETE

O projeto Atletas do Futuro, grupo de pesquisadores brasileiros comandado por João Bosco Pesquero, professor da Unifesp, entre outras atividades realizou uma intervenção baseada na análise de quatro desses genes –sendo um deles o ACTN3 –em jogadores de basquete.

Os atletas tiveram esses quatro genes analisados e para cada indivíduo foi atribuído um escore de resistência e outro de força. No total, eles somam 100 – 87,5 de força e 12,5 de resistência, por exemplo. Cada teste custa R$ 200.

Um atleta com alto escore de força dificilmente vai se dar bem em uma função na quadra que requeira correr continuamente –seu risco de lesões é elevado. No caso, é possível fazer uma alteração de seu treinamento/posicionamento para que ele tenha um desempenho otimizado de acordo com seus genes.

A mesma lógica vale para quem tem alto escore de resistência –talvez valha a pena cansar os adversários com o ritmo elevado durante o jogo do que ir para o embate corpo a corpo.

O resultado da intervenção nos time de basquete –Palmeiras e São José dos Campos– foi tanto uma melhora expressiva nos resultados quanto uma menor ocorrência de lesões nos atletas. Chiaretto Costa, à época preparador físico do Palmeiras, e Pesquero atribuem o sucesso à nova metodologia.

A pergunta que surge com isso é: sabendo qual é o perfil genético "desejado" para uma determinada atividade esportiva, seria possível aplicar isso na busca por novos atletas, a chamada peneira?

Para Pesquero a resposta curta é sim, mas há ressalvas. É crucial que haja vontade de praticar aquela atividade. A determinação e a disciplina também têm papeis importantes e há outros milhares de genes que podem influenciar no desempenho.

Ele afirma que para alguns esportes já foi verificada uma correlação de 80% entre os testes físicos tradicionais e o escore genético –o que deixaria para outros genes e para o ambiente apenas uma explicação correspondente a 20% do desempenho.

O médico geneticista Ciro Martinhago é mais reticente. "Isso ainda está longe ser verdade para população em geral", diz. "Não dá para montar um vencedor com uma análise como essa por enquanto, mas é possível aperfeiçoar o desempenho."

Para Martinhago a principal aplicação da genômica no esporte atualmente seria a prevenção de complicações. Se uma pessoa tem predisposição para trombofilia, arritmia ou morte súbita, um exame desses pode salvar uma vida, afirma."Para o clube, o exame funcionaria como uma espécie de seguro."

DOPING

O estudo dos possíveis fatores que podem levar os cientistas a entenderem as nuances biológicas dos atletas de elite sempre trazem a tiracolo o fantasma do doping.

Isso porque, a partir do momento em que se sabe que gene está associado a uma performance melhor, é possível usar diversos artifícios para "empurrar o organismo para essa direção.

Um exemplo clássico é a eritropoietina, responsável pela síntese de glóbulos vermelhos do sangue. Seu uso é considerado doping. O que é mais difícil de pegar em algum exame seria a versão "genética" desse doping.

Usando um vírus ou algum outro recurso biotecnológico, faz-se com que o organismo do atleta ou candidato a atleta tenha inúmeras cópias daquele gene no organismo. A produção "natural" de eritropoietina passa despercebida nas detecções.

Outro candidato ao "abuso genético" é o gene da miostatina. No caso não precisa nem ativar o gene –basta inibi-lo. Seu papel é limitar a hipertrofia muscular. Uma vez "acalmado", o organismo ganha quantidades incríveis de massa muscular.

Detectar esses e outros tipos de doping genéticos já está na lista de prioridades de agências reguladoras como a WADA (Agência Mundial Antidoping).

No entanto, seria uma tarefa quase impossível, opina Ciro Martinhago. Para ele, não está descartada a hipótese de que já tenhamos entrado nessa nova era da competição esportiva. "Imagine se não seria possível, em troca de dinheiro, algum corredor bastante pobre da Etiópia ou do Quênia se submeter a experimentos dessa natureza."

"Isso sem contar a possibilidade de países, como a Rússia, investirem nessa direção. Essas pessoas podem ter sido selecionadas, otimizadas, e, de repente, já estar por aí há algumas olimpíadas", especula o médico.


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