Folha de S. Paulo


Era realmente preciso matar o gorila Harambe? Especialistas debatem

"Dê os parabéns para Harambe", pedia a equipe do Zoológico de Cincinnati, em Ohio, no Facebook, na sexta passada (27). Para acompanhar, a foto do gorila de recém-feitos 17 anos –sua espécie, ameaçada de extinção, vive em média 50.

O aniversariante tinha 200 kg, lábios que pareciam evocar o sorriso de Monalisa e menos de 24 horas de vida. No dia seguinte, o animal foi abatido com um rifle, após um menino de três anos cair em seu cercado.

A morte de Harambe causou comoção pública e levantou um debate ético sobre o direito dos animais. Zoológicos fazem sentido em pleno século 21? E matá-lo foi realmente necessário?

O time do "sim" argumenta que não havia escolha. Um vídeo que viralizou na internet condensa dez minutos de tensão.

A criança entra no espaço do símio, que reage ora com ternura (parece segurar suas mãos e o levanta para examinar sua camisa), ora com movimentos abruptos (arrasta o garoto pela perna por vários metros, pela água de sua jaula). Entre berros de visistantes, a voz desesperada de Michelle Gregg: "Mamãe está aqui!".

Tranquilizantes, dizem especialistas, demorariam minutos para surtir efeito. Pior, poderiam estressá-lo mais.

Jerry Stones, que conheceu o primata com 21 dias de idade e dele cuidou por 15 anos, não via opção: Harambe precisava morrer.

"De repente, ele tinha algo dentro de sua casa. Era perigoso? Um brinquedo? O que era isso? Ainda que sem intenção, ele era tão grande que poderia machucar a criança acidentalmente."

O biólogo Ian Redmond, consultor-chefe do Grasp (Projeto para a Sobrevivência dos Grandes Macacos), concorda que tranquilizantes enervariam Harambe. "Mas gorilas têm mentes razoáveis", escreveu em artigo para o jornal "The Guardian". Se alguém em quem o símio confiasse aparecesse com uma bandeja de suas frutas favoritas e tentasse acalmá-lo, ele poderia responder bem, diz. "Mantendo todo o tempo um atirador em posição, caso fosse necessário."

Para o etólogo (especialista em comportamento animal) Eduardo Ottoni, da USP, o ideal seria afastar a multidão de visitantes em pânico e tentar a tática da comida, que "provavelmente teria bastado para afastar Harambe da criança".

Ele ressalta que "gorilas são criaturas razoavelmente pacatas e estritamente vegetarianas". O infanticídio, afirma, "ocorre apenas em disputas entre machos, por haréns".

Há precedentes. Em 1996, a gorila Binti Jua resgatou um menino que caiu em seu espaço, em Chicago. Dez anos antes, Jambo, o "Gigante Gentil", fez o mesmo no Reino Unido. Só que, nos dois casos, as crianças perderam a consciência, sem risco de assustar o primata.

A primatologista britânica Jane Goodall, famosa por apontar semelhanças entre humanos e chimpanzés, enviou e-mail ao diretor do Zoológico de Cincinnati. "Sinto tanta pena de você, tendo que tentar defender algo que você pode muito bem desaprovar."

Após assistir ao vídeo, Goodall ficou a impressão de que Harambe tentava proteger Isaiah, como Binti Jua.

GAROTÃO

"Novas aventuras te esperam, garotão!", prometia um post de 18 de setembro de 2014 na página de Facebook do zoológico Gladys Porter, no Texas.

Nascido e criado ali, Harambe estava de mudança. O zoo de Ohio teria mais preparo para preservar sua espécie, o gorila da planície ocidental –restam 175 mil no planeta (a população encolheu 60%, em 25 anos, segundo a World Wildlife Foundation).

Ele ganhou seu nome num concurso, em 1999. Ideia do professor Dan Van Coppenolle, inspirado numa música que ouviu na rádio, de Rita Marley, mulher de Bob: "Harambe". "No meio da canção, Rita explicou o que significava. Em suaíli [língua africana], quer dizer 'trabalhando juntos, reunindo, se ajudando. Lembro de pensar que era uma palavra legal."

Ao morrer, o macaco reuniu milhares em torno de uma causa: é certo manter confinadas espécies com algum grau de consciência, como gorilas, golfinhos e elefantes?

"O principal é: ele nunca deveria estar em cativeiro, para nossa 'diversão', em primeiro lugar", diz à Folha Brittany Peet, codiretora da ONG Peta.

Zoos são um anacronismo, subscreve Ottoni. "Começaram como coleções de reis, para se exibir para as visitas –e incluíam humanos aborígines."

Hoje, a vida selvagem "está a um Google de qualquer um", afirma. Mas ressalva: "No caso de espécies tão ameaçadas na natureza, como grandes primatas, o cativeiro pode ter papel relevante para a conservação".

DE TRUMP A GERVAIS

Todos parecem ter uma opinião sobre o caso Harambe. Pré-candidato à Casa Branca, Donald Trump lamentou que "não houvesse outro jeito" a não ser matar o gorila que "parecia uma mãe segurando seu bebê".

O comediante Ricky Gervais foi ao Twitter condenar o desfecho: "Parece que alguns gorilas levam mais jeito como pais do que algumas pessoas".

É a mesma linha de pensamento da petição on-line "Justiça para Harambe". Com 480 mil assinaturas até a tarde de quinta (2), cobra que os pais e o zoo sejam responsabilizados. "Este lindo gorila perdeu a vida porque os pais não cuidaram direito de seu filho."

Gregg, a mãe do menino Isaiah, escreveu no Facebook que "Deus protegeu seu filho" (que saiu com "uma concussão e alguns arranhões").

Após a grita popular, a polícia local abriu investigação para saber se o menino entrou no cercado dos primatas por negligência dela e do zoológico.

O zoo defende sua ação, ressalta a inediticidade do episódio e promete instalar barreiras extras entre os gorilas e o público.

A mãe nega displicência e pede empatia. "Como sociedade, somos rápidos em julgar como um pai pode ser relapso", disse Gregg. "Mantenho meus filhos sob minha asa. Mas acidentes acontecem."


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