Folha de S. Paulo


Bichos têm vida mental complexa, diz ecólogo dos EUA em livro

Contos de fadas e fábulas do mundo todo são povoados por uma interminável galeria de lobos no papel de vilão. Se algum escritor ou diretor de desenhos animados estiver um busca de um antídoto para essa tendência, basta roubar um personagem da vida real: Vinte-Um, o guerreiro gentil do Parque Nacional Yellowstone (EUA).

Vinte-Um nunca perdeu uma batalha. Por duas vezes, chegou a enfrentar sozinho outros seis lobos ao mesmo tempo, derrotando todos os desafiantes. Teve muitas chances de eliminar adversários em combate –e sempre preferiu deixá-los vivos, depois de agraciá-los com uma bela sova, obviamente.

Liderou a maior alcateia já registrada pelos especialistas (com quase 40 membros), e seu grande prazer era brincar com os filhotes do grupo, fingindo ser vencido por eles. "Observá-lo era como ver algo sobrenatural. Era como ver Bruce Lee lutando, só que na vida real", resume Rick McIntyre, biólogo de Yellowstone.

Histórias como a de Vinte-Um são a matéria-prima do livro "Beyond Words: What Animals Think and Feel" ("Além das Palavras: O que os Animais Pensam e Sentem", ainda sem versão brasileira), escrito pelo ecólogo americano Carl Safina, da Universidade Stony Brook.

SENTIMENTOS

Munido de bom senso, lirismo e bom humor, Safina tem uma meta ao mesmo tempo simples e ambiciosa: mostrar que é só por preconceito que as pessoas ainda evitam dizer com todas as letras que os bichos também têm vidas mentais e emocionais, às vezes quase tão complexas quanto as nossas.

"Só seres humanos possuem mentes humanas. Mas acreditar que só seres humanos possuem mentes é como acreditar que, uma vez que só pessoas possuem esqueletos humanos, só pessoas têm esqueletos", escreve Safina.

Esse é detalhar o argumento central do livro: uma vez que a evolução dotou os seres humanos de capacidades mentais que os ajudam a sobreviver e a se reproduzir, faz todo o sentido do mundo que coisas parecidas também estejam presentes em outras criaturas, que compartilham boa parte de sua trajetória evolutiva com nossos ancestrais.

O pesquisador deixa claro que a culpa por esse tipo de preconceito não é só do senso comum. Alguns dos pioneiros do estudo do comportamento animal defenderam por décadas que era inútil tentar investigar a vida mental de um bicho.

A ideia acabou virando um dogma, ignorando tanto o parentesco evolutivo entre humanos e animais quanto as profundas semelhanças entre o nosso sistema nervoso e o de quase todos os vertebrados.

Infográfico: Emoções animais

DA SAVANA AO OCEANO

Em sua tentativa de mergulhar nas mentes de outros animais, Safina acompanhou o trabalho de campo de cientistas que estudam três mamíferos de vida social complexa: elefantes-africanos, orcas do Canadá e, é claro, os lobos de Yellowstone.

Mas a narrativa também passeia por uma grande variedade de outras espécies, desde, é claro, primatas não humanos (normalmente astros desse tipo de livro, graças à sua semelhança conosco) até aves, peixes e invertebrados.

Talvez o elemento mais impressionante do comportamento seja a presença de personalidades bem definidas e muito características entre os mamíferos sociais.

Em outras palavras, animais são indivíduos únicos –uma informação que certamente parecerá uma obviedade sem tamanho para quem já teve mais de um bicho de estimação em casa.

Vista sobre esse prisma, a vida cotidiana de elefantes ou orcas de repente parece uma mistura de "Game of Thrones" com "Friends", digamos –momentos épicos e cômicos se combinando para forjar o destino dos personagens individuais, de grupos e até de espécies inteiras.

Alguns dos protagonistas são admiráveis, outros são vis, mas nenhum é menos complicado do que qualquer pessoa do tipo bípede.

E, por falar nisso, diversos casos desencavados por Safina sugerem que tais criaturas são capazes de considerar seres humanos como "pessoas" como eles. São elefantes que protegem humanos feridos e "enterram" humanos mortos (a exemplo do que fazem com sua própria espécie) ou leões que estabelecem "armistícios" com caçadores de tribos humanas –a lista ainda é curta, mas extremamente intrigante.

Safina não hesita em colocar esses dados todos numa perspectiva ética: se animais não são meras máquinas de sobrevivência, mas seres com uma vida interior, há alguma justificativa para enxergá-los como simples "recursos naturais"?

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Beyond Words: What Animals Think and Feel
Quanto: R$ 69,82 (livro eletrônico); 480 págs.
Autor: Carl Safina
Editora: Henry Holt and Company


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