Folha de S. Paulo


Afobação faz cientistas classificarem fósseis de símios como hominídeos

Uma parte crucial da árvore genealógica da espécie humana virou um saco de gatos, uma bagunça completa, argumentam dois respeitados paleoantropólogos americanos.

O problema é o conjunto de espécies hoje classificadas no gênero Homo, grupo ao qual pertence, é claro, o Homo sapiens, ou seja, o ser humano de anatomia moderna, e seus primos europeus extintos, os neandertais.

É verdade que, nesses dois casos, não há grandes dúvidas –tanto que análises de DNA revelaram episódios de miscigenação entre humanos modernos e neandertais. Para Jeffrey Schwartz, da Universidade de Pittsburgh, e Ian Tattersall, do Museu Americano de História Natural, no entanto, a coisa fica feia quando o objetivo é entender formas mais arcaicas de ancestrais da humanidade.

Escavações na África e em outros lugares do mundo revelaram um minizoológico dessas criaturas –há o H. habilis, o H. rudolfensis, o H. ergaster, o H. erectus e formas mais misteriosas, conhecidas simplesmente como "Homo primitivo", isso sem falar em alguns outros nomes científicos que acabaram não pegando.

Tais nomes científicos designam fósseis que viveram num intervalo relativamente curto do tempo geológico –grosso modo, entre 2,5 milhões e 1,5 milhão de anos atrás.

Em artigo na última edição da revista especializada "Science", Schwartz e Tattersall defendem que esse milagre da multiplicação da nomenclatura foi longe demais. Boa parte dos fósseis do infográfico nesta página não deveria estar no gênero Homo, dizem eles.

Infográfico: Os principais membros do gênero Homo

MONO O QUÊ?

"Monofilético" é a palavra-chave, disse Tattersall à Folha. O termo, empregado em estudos sobre o parentesco evolutivo entre seres vivos, designa um grupo que inclui uma espécie ancestral e todos os seus descendentes. O indício-chave desse parentesco são (prepare-se para outro palavrão em grego) as chamadas sinapomorfias, que não passam de características compartilhadas por todos os membros do grupo –e apenas entre eles.

Gêneros de seres vivos, como o Homo, precisam ser grupos monofiléticos. Embora não haja uma regra estrita sobre quão inclusivos eles podem ser (ou seja, sobre a diversidade de espécies que podem "caber" dentro de um gênero), de modo geral um gênero congrega espécies de parentesco bastante próximo. Um exemplo que ajuda a entender isso no caso de mamíferos como nós é o do gênero Panthera, que congrega, entre outros, onças-pintadas, leopardos, leões e tigres.

A principal ferramenta usada ainda hoje pelos cientistas para classificar espécies (ainda vivas ou extintas) em gêneros é a semelhança anatômica ou morfológica. "Uma vez que o gênero Homo necessariamente tem de abrigar o H. sapiens, o jeito óbvio de organizar as coisas é partir dessa espécie e ver quais formas extintas formam um agrupamento monofilético e morfologicamente unificado com ele", explica Tattersall.

Para ele, porém, não é o que anda sendo feito.

"Os paleoantropólogos têm simplesmente enfiado fósseis mais e mais antigos no gênero sem se preocupar muito com a questão da morfologia. Em vez de fazer as coisas com cuidado, os trabalhos seguem o desejo de descobrir o 'Homo mais antigo', o que não dá muito certo."

Segundo ele, essa corrida acabou praticamente abandonando a busca por sinapomorfias, ou seja, traços capazes de unir de forma coerente os fósseis classificados como Homo.

De fato, existe uma enorme diversidade entre os primatas extintos hoje incluídos no gênero: há desde tampinhas (com 1,40 m de altura ou menos) de cérebro pouco maior que o de um chimpanzé, como o Homo habilis, até criaturas que fabricavam ferramentas relativamente complexas e tinham o corpo alto e esguio de um maratonista queniano, caso de alguns exemplares do Homo erectus.

Outros cientistas, como Esteban Sarmiento, da Fundação Evolução Humana (EUA), dizem que tal tendência tem levado cientistas mais afoitos a enxergar hominídeos em toda parte -certos fósseis na verdade seriam de grandes macacos primitivos.

"Existe um desejo subliminar de enxergar certos fósseis como hominídeos", pondera Tattersall. "Nós, por exemplo, descobrimos que muitos dentes do Extremo Oriente atribuídos ao Homo erectus poderiam ser interpretados de forma mais razoável como pertencentes a primos dos orangotangos. O status de hominídeo de algumas formas africanas muito antigas chegou a ser contestado."

Diante do aparente impasse, o que fazer? A sugestão de Schwartz e Tattersall é simples: começar de novo, praticamente do zero. Eles defendem que é preciso reanalisar cuidadosamente a morfologia de cada fóssil de hominídeo e, a partir daí, propor agrupamentos novos e mais coerentes.

Segundo eles, isso quase certamente levará os especialistas a jogar na lata do lixo da nomenclatura paleontológica vários dos nomes científicos que são populares hoje; ao mesmo tempo, novos gêneros deverão ser criados para acomodar os hominídeos "sem-teto".

Caso isso aconteça, seria mais um passo importante para solapar a ideia de que a evolução humana seguiu uma espécie de progressão lógica e linear, com o "objetivo" de produzir o Homo sapiens.

Em vez disso, o cenário seria mais parecido com o que se vê em outros grupos de mamíferos: uma grande diversidade de gêneros convivendo e competindo, mais como um arbusto de que como uma árvore de tronco único.


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